sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Uma vingança inconsciente

No século passado, minha única viagem a Toronto ocorreu sem sobressaltos. Era finzinho de novembro e nunca senti tanto frio. Andava que nem tatu por subterrâneos aquecidos, como se uma primavera sem sol fosse uma estação alternativa no subsolo. Mas, quando saía da toca, o vento gelado feria até a alma. No inverno canadense tive certeza de que sou um ser dos trópicos, que nem sempre são tristes.
Sorte diferente teve minha amiga Lena quando passou uns dias de verão em Toronto, na casa do ex-marido. Passeou pela cidade e por seus arredores, navegou em lagos belíssimos que, para meus olhos míopes, formavam um horizonte de gelo cercado de árvores nuas. Não conheci os museus, restaurantes e livrarias que ela conheceu. Enfim, Lena conheceu Toronto e eu apenas senti frio e falei sobre literatura numa noite de verão artificial. Mas entre o verão de minha amiga e o meu inverno em Toronto há uma história de separação e água, muita água…
Lena ainda gostava do ex-marido, mas se resignara à separação: o amor nem sempre é mútuo para sempre. Mesmo assim, mantinha laços cordiais com ele e com a rival.
Foi uma separação civilizada”, disse Lena, dando uma gargalhada. “Você sabe o que é isso?”
Não sabia, mas fiquei calado, pensando na selvageria das minhas separações.
Por culpa ou genuína generosidade, o ex-marido de Lena ofereceu-lhe a casa de Toronto para passar o verão, quando ele e a nova mulher passariam férias no Brasil.
Lena dormiu na mesma cama onde o casal dormia no andar superior da elegante casa de madeira e vidro, projetada por um famoso arquiteto canadense. Usou os mesmos lençóis e o mesmo travesseiro; viu várias fotografias da rival com o ex-marido: os dois em Montreal, nas dunas do Maranhão, em Angra dos Reis, na Sicília, na Puglia…
Viajaram mais que guias turísticos”, disse Lena, com uma ponta de ciúme. Ou morrendo de ciúme. Depois ela disse: “Comigo, ele só ia para Brasília, esse mausoléu futurista”.
Lena ia passar um mês em Toronto, mas na terceira semana de férias decidiu antecipar sua volta ao Brasil. Disse que tudo naquela casa conspirava contra a hóspede, que era ela mesma. Numa noite arrependeu-se de ter aceitado o convite do ex-marido. Foi quando bebeu sozinha uma garrafa de Bordeaux, que ela encontrou na adega climatizada.
Vinho caríssimo”, disse minha amiga. “Mais de duzentas garrafas de tintos franceses e italianos de boa safra. Para quem se contentava com qualquer vinho argentino, é um salto de sofisticação do paladar.”
Na noite da viagem de volta para São Paulo, Lena esperou o táxi na porta da casa. O carro chegou na hora prevista e o motorista pôs a bagagem no porta-malas. Antes de entrar no táxi, Lena sentiu uma súbita vontade de ir ao banheiro. Subiu a escada em caracol e, sentada no vaso sanitário, ainda teve tempo e estômago para rever uma foto íntima do casal: o ex-marido e a outra em Istambul; depois não viu mais nada: o ciúme, mais que a cólica, turva a visão. Deu a descarga com um gesto abrupto, talvez bruto e pouco civilizado, e desceu apressada, com medo de chegar atrasada ao aeroporto.
Na noite do dia seguinte telefonou ao ex-marido para lhe agradecer e falar brevemente sobre a temporada canadense. Não o encontrou. Mas ele, gentil, ligou de Toronto duas semanas depois. Ouviu o relato rápido de Lena. Depois ela ouviu o ex-marido dizer que a casa de madeira e vidro tinha desabado. Lena emudeceu. E ele prosseguiu: “Você usou o banheiro antes de ir para o aeroporto e a descarga emperrou, disparou e inundou o andar de cima. A laje não suportou o peso da água e despencou no térreo. Estamos morando num hotel…”.
Lena se desculpou e, antes mesmo de desligar, não conteve a gargalhada, talvez a mesma que deu quando me contou a história de sua separação civilizada.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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