No
século passado, minha única viagem a Toronto ocorreu sem
sobressaltos. Era finzinho de novembro e nunca senti tanto frio.
Andava que nem tatu por subterrâneos aquecidos, como se uma
primavera sem sol fosse uma estação alternativa no subsolo. Mas,
quando saía da toca, o vento gelado feria até a alma. No inverno
canadense tive certeza de que sou um ser dos trópicos, que nem
sempre são tristes.
Sorte
diferente teve minha amiga Lena quando passou uns dias de verão em
Toronto, na casa do ex-marido. Passeou pela cidade e por seus
arredores, navegou em lagos belíssimos que, para meus olhos míopes,
formavam um horizonte de gelo cercado de árvores nuas. Não conheci
os museus, restaurantes e livrarias que ela conheceu. Enfim, Lena
conheceu Toronto e eu apenas senti frio e falei sobre literatura numa
noite de verão artificial. Mas entre o verão de minha amiga e o meu
inverno em Toronto há uma história de separação e água, muita
água…
Lena
ainda gostava do ex-marido, mas se resignara à separação: o amor
nem sempre é mútuo para sempre. Mesmo assim, mantinha laços
cordiais com ele e com a rival.
“Foi
uma separação civilizada”, disse Lena, dando uma gargalhada.
“Você sabe o que é isso?”
Não
sabia, mas fiquei calado, pensando na selvageria das minhas
separações.
Por
culpa ou genuína generosidade, o ex-marido de Lena ofereceu-lhe a
casa de Toronto para passar o verão, quando ele e a nova mulher
passariam férias no Brasil.
Lena
dormiu na mesma cama onde o casal dormia no andar superior da
elegante casa de madeira e vidro, projetada por um famoso arquiteto
canadense. Usou os mesmos lençóis e o mesmo travesseiro; viu várias
fotografias da rival com o ex-marido: os dois em Montreal, nas dunas
do Maranhão, em Angra dos Reis, na Sicília, na Puglia…
“Viajaram
mais que guias turísticos”, disse Lena, com uma ponta de ciúme.
Ou morrendo de ciúme. Depois ela disse: “Comigo, ele só ia para
Brasília, esse mausoléu futurista”.
Lena
ia passar um mês em Toronto, mas na terceira semana de férias
decidiu antecipar sua volta ao Brasil. Disse que tudo naquela casa
conspirava contra a hóspede, que era ela mesma. Numa noite
arrependeu-se de ter aceitado o convite do ex-marido. Foi quando
bebeu sozinha uma garrafa de Bordeaux, que ela encontrou na adega
climatizada.
“Vinho
caríssimo”, disse minha amiga. “Mais de duzentas garrafas de
tintos franceses e italianos de boa safra. Para quem se contentava
com qualquer vinho argentino, é um salto de sofisticação do
paladar.”
Na
noite da viagem de volta para São Paulo, Lena esperou o táxi na
porta da casa. O carro chegou na hora prevista e o motorista pôs a
bagagem no porta-malas. Antes de entrar no táxi, Lena sentiu uma
súbita vontade de ir ao banheiro. Subiu a escada em caracol e,
sentada no vaso sanitário, ainda teve tempo e estômago para rever
uma foto íntima do casal: o ex-marido e a outra em Istambul; depois
não viu mais nada: o ciúme, mais que a cólica, turva a visão. Deu
a descarga com um gesto abrupto, talvez bruto e pouco civilizado, e
desceu apressada, com medo de chegar atrasada ao aeroporto.
Na
noite do dia seguinte telefonou ao ex-marido para lhe agradecer e
falar brevemente sobre a temporada canadense. Não o encontrou. Mas
ele, gentil, ligou de Toronto duas semanas depois. Ouviu o relato
rápido de Lena. Depois ela ouviu o ex-marido dizer que a casa de
madeira e vidro tinha desabado. Lena emudeceu. E ele prosseguiu:
“Você usou o banheiro antes de ir para o aeroporto e a descarga
emperrou, disparou e inundou o andar de cima. A laje não suportou o
peso da água e despencou no térreo. Estamos morando num hotel…”.
Lena
se desculpou e, antes mesmo de desligar, não conteve a gargalhada,
talvez a mesma que deu quando me contou a história de sua separação
civilizada.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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