quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Um sonho claro e belo

Veja só — comecei a dizer. — Na verdade, não foi nada de grave. Fui convidado a jantar em casa de um professor (devo dizer-lhe que eu não sou professor), mas na verdade não devia ter ido; não estou acostumado a sentar-me entre as pessoas e conversar, já esqueci. Entrei na casa com a sensação de que algo não ia bem; e quando pendurei o chapéu no cabide, veio-me logo a ideia de que breve iria precisar dele. Pois bem, havia na casa desse professor uma gravura, uma gravura estúpida, que muito me aborreceu...
Que gravura? Por que se aborreceu? — perguntou interrompendo-me.
Bem, era um quadro que representava Goethe, sabe, o poeta Goethe. Mas não estava ali representado como o foi de fato. A rigor não se sabe muito bem como foi na realidade, pois há mais de cem anos que morreu. Mas algum pintor moderno pintou-o tão alambicado e penteadinho conforme imaginação, que o retrato me irritou e achei-o odioso. Não sei se me compreende.
Estou compreendendo perfeitamente, não se preocupe. Adiante!
Já antes disso eu não estava lá muito de acordo com o professor. Como quase todos os professores, ele é um grande patriota e durante a guerra ajudou decididamente a enganar o povo, com as melhores intenções, é claro. Eu, ao contrário, sou inimigo da guerra. Mas, deixemos isso de lado. Continuando a história, não havia a menor necessidade de estar olhando para o retrato...
Claro que não.
Mas, em primeiro lugar, causou-me pena por causa de Goethe, a quem tenho na mais alta das considerações, e, além disso, porque pensei: "Bem, estou aqui sentado entre pessoas que me parecem iguais a mim e que devem amar Goethe tanto quanto eu e devem ter dele uma imagem igual àquela que tenho em meu espírito; e, no entanto, ali está aquele retrato sensaborão, falso e meloso, e o acham admirável e não têm a menor ideia de que o espírito desse retrato é exatamente o contrário do espírito de Goethe. Acham o quadro maravilhoso, da mesma forma como acham maravilhoso quase tudo quanto eu também estimo; mas a essa altura eu já perdera de vez toda a confiança, amizade e sentimento de afinidade que podia depositar nessas amáveis pessoas. Além do mais, a minha amizade por eles não era lá grande coisa. De modo que fiquei indignado e triste e compreendi que estava completamente só e que ninguém me compreendia. Sabe o que quero dizer?
Perfeitamente, Harry. E depois? Você quebrou o quadro na cabeça deles?
Não, mas cheguei quase a insultar o professor e me despachei dali, correndo. Queria ir para casa, mas...
Mas lá não encontraria nenhuma mamãe que consolasse o nenenzinho ou que ralhasse com ele, não é? Sim, Harry, você chega a me dar pena. Nunca vi ninguém criança quanto você!
Também me parecia, tive de concordar. Deu-me um copo de vinho para beber. Estava comportando-se comigo como se fosse uma babá. Não obstante eu ia aos poucos percebendo o quanto era jovem e bonita.
Acontece que — voltou ela a dizer — há mais de cem anos Goethe está morto e Harry o admira tanto que faz dele uma ideia maravilhosa, de como teria sido e nisto está no seu direito, não é mesmo? Mas o pintor, que também admita Goethe e dele tem a sua ideia, esse está errado e bem assim o professor, já que isso não agrada a Harry e o põe desesperado a ponto de insultar as pessoas e sair correndo! Se fosse uma pessoa normal, teria simplesmente rido do pintor e do professor. Se fosse louco, teria atirado com o retrato na cabeça deles. Mas como não passa de um garotinho, só sabe correr para casa e pensar em matar-se. Olha, compreendi muito bem a sua história, Harry. É muito engraçada. Me faz rir. Espere aí, nada de beber de um só trago! O borgonha se bebe aos pouquinhos, senão dá muito calor. Puxa! a gente tem de ensinai tudo a você!
Seu olhar era severo e admoestador como o de uma governanta sessentona.
Oh, por favor, senhorita — supliquei, contente.
Ensine-me tudo!
Que você quer mais que lhe ensine?
Tudo o que a senhorita houver por bem.
Olhe, vou lhe dizer uma coisa. Há coisa de uma hora que o estou chamando com toda a intimidade de você e você ainda me vem com esse negócio de senhorita. Cheio de frases rebuscadas, sempre complicando as coisas. Quando uma pessoa trata a gente com intimidade e isso não nos desagrada, devemos tratá-la com intimidade também. Bem, já lhe ensinei uma coisa. Depois, em segundo lugar, há meia hora se que se chama Harry. Sei porque lhe perguntei. Mas você nem sequer se interessou em saber o meu nome.
Oh, por favor, me interesso sim; quero saber como se...
Agora é tarde! Se nos encontrarmos de novo, pode então me perguntar Hoje é que não digo. E agora vou dançar. E como fizesse menção de levantar-se, meu ânimo aba se e a angústia tomou conta de mim, pois se ela se fosse e deixasse só, tudo iria começar de novo. Como uma dor de dente que passa por um instante e depois volta a abrasar como fogo, assim reapareceram em mim a angústia e o horror. Oh, Deus, tinha conseguido esquecer, então, o que estava à minha espera? Podia esperar outra coisa?
Espere! — exclamei suplicante — não se vá! Você pode dançar o quanto quiser, mas volte depois para cá. Volte de novo, volte!
Levantou-se, sorrindo. Imaginava-a mais alta; era esguia, mas não muita alta. Voltou de novo a lembrar-me alguém. Quem seria? Não conseguia atinar.
Volta? Promete?
Prometo, mas isso pode durar um instante ou uma hora talvez. Quero dizer-lhe mais uma coisa: feche os olhos e descanse um pouco. É disso que você está precisando. Afastei-me para que ela passasse e a saia roçou-me os joelhos. Ao sair, olhou-se num pequenino espelho de bolsa, ergueu as sobrancelhas e passou a esponja pelo queixo; depois desapareceu no salão de baile. Olhei em meu redor: caras estranhas, homens fumando, cerveja derramada sobre o mármore das mesas, vozerio e algazarra por toda a parte e música de dança em meus ouvidos. Eu devia dormir, me dissera ela. Ah, boa menina, se você soubesse que o meu sono é tão arisco quanto uma doninha! Dormir em meio a este tumulto, sentado a uma mesa, entre o brindar dos copos de cerveja!... Sorvi um pouco do vinho, tirei um cigarro do bolso, procurei o fósforo, mas como na realidade não tivesse nenhum desejo de fumar, pus o cigarro diante de mim sobre a mesa. “Feche os olhos!” — me dissera ela. Sabe Deus por a moça tinha aquela voz, uma voz tão bondosa, maternal. Fazia bem obedecer-lhe, isso eu já havia descoberto antes. Fechei os olhos obediente, apoiei a cabeça na parede, ouvi o ruído de mil vozes que vinham chocar-se contra achei graça na ideia de dormir naquele lugar, resolvi aproximar-me da porta do salão de baile e dar uma olhada para dentro — queria ver a minha formosa companheira dançando — fiz um movimento para levantar-me e logo me dei conta de como estava exausto em razão de haver caminhado horas e horas e por isso permaneci sentado. E logo adormeci, como me fora ordenado pela voz maternal; dormi ansioso e agradecido, e sonhei, um sonho claro e belo, como há muito não me era dado sonhar.
Hermann Hesse, in O lobo da estepe

Nenhum comentário:

Postar um comentário