sábado, 20 de outubro de 2018

Um cavalo de corrida genial faz amadurecer em Ulrich a ideia de ser um homem sem qualidades

Não era sem importância Ulrich poder dizer que realizara muitas coisas na ciência. Seus trabalhos lhe tinham granjeado reconhecimento alheio. Esperar admiração seria pedir demais, pois mesmo no reino da verdade só se admiram sábios mais velhos, dos quais depende conseguirmos ou não o mestrado ou a cátedra. Para ser exato, ele continuava sendo o que se chama de uma esperança, e, na república dos espíritos, consideram-se uma esperança aqueles republicanos, propriamente ditos, que imaginam ter de dedicar à causa todas as suas forças, em lugar de empregar a maior parte delas para fazer carreira; esquecem que as contribuições individuais são pouca coisa, enquanto a carreira é desejo de todos, e negligenciam o dever social de lutar para subir na vida, começando como carreirista, para, nos tempos de sucesso, poder ser apoio e instigação para outros tentarem subir.
Certo dia, Ulrich deixou de querer ser uma esperança. Naquela época já se começava a falar de gênios do futebol ou do boxe, mas para no mínimo dez inventores, tenores ou escritores geniais, os jornais não citavam mais do que, no máximo, um centro- médio genial, ou um grande tático de tênis. A nova mentalidade ainda não estava muito segura de si. Mas foi exatamente aí que Ulrich leu em alguma parte, como antecipação de verão, a expressão “cavalo de corrida genial”. Era uma notícia sobre um grande sucesso nas pistas de corrida, e o autor talvez nem tivesse consciência de toda a dimensão da sua idéia, que o espírito dos tempos lhe inspirara. Mas Ulrich compreendeu que ligação inevitável existia entre a sua vida e aquele cavalo de corrida genial. Pois o cavalo sempre fora o animal sagrado da cavalaria, e na sua juventude de militar Ulrich praticamente só ouvira falar de cavalos e mulheres, e fugira para se tornar um homem importante; e quando agora, depois de variados esforços, poderia sentir bem próximo o cume de suas aspirações, de lá o saudava o cavalo, que a ele se antecipara.
Isso se justifica cronologicamente, pois não faz muito imaginava-se, como espírito viril digno de admiração, uma criatura cuja coragem fosse ética, cuja força fosse persuasão, cuja firmeza fosse a do coração e da virtude; julgava-se a velocidade coisa de adolescentes, a trapaça coisa proibida, e a agilidade e o ímpeto eram considerados indignos. Por fim, essa criatura existia apenas no corpo docente de algum ginásio e em expressões escritas; tornara-se um espectro ideológico, e a vida teve de construir uma nova imagem de homem. Olhando em torno, ela descobriu porém que os golpes e manhas que uma cabeça inventiva aplica num cálculo lógico não se distinguem muito dos ataques de um corpo bem treinado, e que há uma força de combate espiritual geral que as dificuldades e improbabilidades tornam fria e sábia, quer adivinhe o ponto fraco de um problema, ou de um inimigo físico. Se analisássemos, do ponto de vista psicotécnico, um grande intelecto ou um campeão de boxe, a esperteza, coragem, exatidão e capacidade de estabelecer associações bem como a rapidez de reações num terreno que lhes é importante serão provavelmente as mesmas nos dois; nas virtudes e capacidades que lhes significam um êxito especial, os dois não se distinguiriam de um cavalo de salto famoso, pois não se deve menosprezar as muitas qualidades em jogo quando se salta uma sebe. Mas um cavalo e um campeão de boxe têm vantagem sobre um intelecto, pois sua importância e suas realizações se podem medir diretamente, e se reconhece o melhor entre eles como sendo realmente o melhor; dessa forma, o esporte e a objetividade se adiantaram merecidamente, substituindo os conceitos antiquados de gênio e grandeza humana.
Quanto a Ulrich, deve-se dizer que ele nesse ponto estava bastante à frente de seu tempo. Pois fora exatamente assim, melhorando o próprio recorde em uma vitória, um centímetro ou quilo, que trabalhara quando se dedicava à ciência. Provara ter espírito forte e aguçado, e realizara trabalho de fortes. Esse prazer na força do espírito era uma expectativa, um jogo belicoso, uma espécie de indefinido mas imperioso direito sobre o futuro. Ele não sabia bem o que faria com essa força; podia-se fazer tudo ou nada, ser um salvador do mundo ou um criminoso. E provavelmente essa é a condição psíquica geral da qual se originam novos reforços para o mundo das máquinas e descobertas. Ulrich encarava a ciência como preparação e endurecimento, uma espécie de treinamento. Se visse que esse pensamento científico era demasiadamente seco, áspero e limitado, sem maior campo de visão, aceitá-lo-ia como se aceita a expressão de tensão e privações nos rostos durante grandes realizações do corpo e da vontade. Anos a fio ele amara o ascetismo espiritual. Odiava pessoas que não seguem a expressão de Nietzsche: “passar fome na alma, por amor à verdade”; os que recuam, fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre a alma, e a alimentam com sentimentos religiosos, filosóficos e poéticos que são como pãezinhos desmanchados no leite, por recearem que a razão lhes dê pedras em vez de pão.
Ele pensava que neste século toda a humanidade se encontrava numa expedição, e o orgulho exigia que a todas as perguntas inúteis se respondesse “ainda não” e que se vivesse uma vida baseada em conceitos provisórios mas consciente de um objetivo que seus descendentes atingiriam. A verdade é que a ciência desenvolveu um conceito de força espiritual dura e lúcida, que torna insuportáveis todos os antigos conceitos metafísicos e morais da humanidade, embora em seu lugar só possa colocar a esperança de que haverá um dia longínquo, em que descerá aos vales da fertilidade espiritual uma raça de conquistadores espirituais.
Mas isso só funciona enquanto não somos forçados a afastar o olhar das distâncias visionárias para a proximidade atual, lendo que um cavalo acaba de se tornar genial. Na manhã seguinte Ulrich levantou de pé esquerdo, e com o direito tentou pescar, indeciso, o chinelo. Fora numa cidade e rua diferentes daquela onde morava agora, mas não fazia mais que algumas semanas. Já passavam automóveis disparando no asfalto marrom sob sua janela; a pureza do ar matinal começava a encher-se com o azedume do dia, e naquela luz luminosa que entrava pelas cortinas, pareceu-lhe indizivelmente insensato fazer como de costume, movendo seu corpo nu para frente e para trás, erguendo-o do solo com os músculos da barriga, deitando-se de novo, e por fim batendo os punhos contra um punching ball, como fazem tantas pessoas à mesma hora antes de irem ao escritório. Uma hora por dia, é um doze avôs da vida consciente, e basta para manter um corpo treinado como o de uma pantera, capaz de enfrentar qualquer aventura; mas é desperdiçada numa expectativa insensata, pois nunca chegam aventuras dignas de tal preparativo. O mesmo acontece com o amor, para o qual o ser humano é preparado da maneira mais monstruosa.
Por fim, Ulrich ainda descobriu que também na ciência parecia um homem que escalou uma montanha após a outra sem avistar seu objetivo. Possuía fragmentos de uma nova maneira de pensar e sentir, mas a nova visão, inicialmente tão forte, perdera-se em detalhes cada vez mais abundantes; e se ele acreditara estar bebendo da fonte da vida, esgotara agora quase todas as suas expectativas.
Foi então que interrompeu pela metade um grande e promissor trabalho. Seus colegas lhe pareciam em parte furiosos e implacáveis promotores públicos e chefes-de-segurança da Lógica, e em parte viciados em ópio ou alguma droga rara, que povoava seu mundo com visões de cifras e equações abstratas. “Meu Deus!”, pensou, “nunca tive intenção de ser matemático durante a vida inteira.”
Mas que intenção tivera, afinal? Naquele momento, só poderia se voltar para a filosofia. Mas a filosofia, no estado em que então estava, lembrava-lhe a história de Dido, na qual se corta um couro em tiras sem saber ao certo se estas poderão rodear um reino; e o que se fazia de novo parecia-se com aquilo que ele próprio fizera, e não o conseguia atrair. Ele só sabia que se sentia mais distante daquilo que desejara ser do que se sentia quando jovem, se é que uma vez soubera o que desejava. À exceção da capacidade de ganhar dinheiro, de que não precisava, via em si próprio com incrível nitidez todas as capacidades e qualidades que seu tempo prestigiava. Mas a capacidade de aplicá-las perdera-se; e como, finalmente, agora que jogadores de futebol e cavalos de corrida têm gênio, apenas o uso que dele se fizer nos resta para salvarmos nossa singularidade, decidiu tirar um ano de férias da sua vida, e procurar uma aplicação adequada para suas capacidades.
Robert Musil, in O homem sem qualidade

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