O diretor Steven Spielberg durante as filmagens de "Tubarão"
Eram
três casais de amigos, todos no lado, digamos, menos ensolarado dos
50 anos. Já tinham jantado, já tinham esgotado todos os assuntos do
momento, e estavam entrando nas reminiscências, na fase do lembra
quando? E a Rosane inventou de perguntar se todos se lembravam de
como tinha se iniciado o namoro que resultara no casamento de cada
par. Da gênese, da origem, do foi assim que tudo começou. A
primeira voluntária foi a Dolores.
*
* *
— Devemos
nosso casamento a um tubarão.
— A
um tubarão?!
— Não
um tubarão de verdade. Um tubarão de cinema.
E
Dolores contou que estava num cinema vendo aquele filme de tubarão
do Spielberg com um grupo, sentada entre um primo e a única pessoa
que não conhecia no grupo.
— Que
vinha a ser adivinhem quem?
Viriato,
o marido da Dolores, levantou o dedo e disse “Eu”. Foi aplaudido
por toda a mesa.
— Aí,
Vivi!
Dolores
continuou:
— Naquela
hora em que o tubarão aparece de repente e quase pega o cara, eu
levei um susto e me atirei em cima do Vivi. Escondi a cara no peito
do Vivi.
— Espera
aí — interrompeu o Bruno, marido da Rosane. — Por que você se
atirou em cima de um desconhecido e não em cima do primo?
— Na
hora, com o susto, não escolhi o lado. Foi uma coisa instintiva, não
pensada.
A
mesa se dividiu, metade achando que não tinha sido tão instintivo
assim, que a Dolores tinha premeditado o bote no Vivi e a história
estava mal contada, e metade achando que tudo fora mesmo um acaso.
— E
aí o Vivi aproveitou e meteu a mão?
— Não.
Eu pedi desculpas, nós rimos muito, na saída do cinema ficamos
conversando e o resultado, trinta anos, três filhos e dois netos
depois, está aqui. Engraçado, né? Devemos nossa vida a um tubarão
mecânico.
*
* *
— Pois
nós — disse a Sibelis — devemos nossa vida a um engano.
Quem
mais se surpreendeu com a frase da Sibelis foi o marido dela, o
Rubem. Que não disse nada. Sorriu como se também estivesse se
lembrando do engano. Mas não sabia do que a mulher estava falando.
— Foi
num bar. Eu estava sozinha e uma amiga minha veio perguntar se eu
topava sair com um cara, para acompanhar ela e o namorado dela, e me
apontou o cara no outro lado do bar. Gostei do jeito dele e topei.
— E
o cara era o Rubem.
— Não.
Era um que estava ao lado do Rubem. Eu tinha gostado do jeito do cara
errado. Só descobri quando a amiga nos apresentou. O que tinha me
agradado era o namorado dela. Mas eu não podia voltar atrás e saí
com o Rubem para não ser chata.
— E
deu tudo certo.
— Deve
ter dado. Casamos e estamos casados até hoje. Trinta anos.
— Viu
só? É outro caso de acaso. Outro tubarão mecânico.
— Mas
— continuou a Sibelis — eu às vezes penso no que teria sido
minha vida se eu não tivesse me enganado. Se o namorado da amiga
fosse o Rubem e o outro, o que eu gostei, fosse o meu par naquela
noite.
E
a Sibelis virou-se para o Bruno e perguntou:
— Você
também não pensa nisso, Bruno?
— Eu?!
— Você
não lembra? O outro cara era você.
Durante
longos segundos ninguém falou nada na mesa, até o Viriato, só para
não deixar o silêncio inflar daquele jeito, dizer a única palavra
apropriada para a situação:
— Epa.
*
* *
O
Rubem continuava sorrindo. Disse:
— Eu
e a Sibelis comentamos isso seguidamente. Como às vezes um detalhe,
um engano, um acaso, pode mudar o destino de...
A
Sibelis o interrompeu:
— Você
nunca soube do engano, Rubem. Eu nunca contei. Em trinta anos, eu
nunca contei. E você nem lembrava que era o Bruno que estava com
você no dia em que nos conhecemos. Não seja fingido, Rubem.
— Olha
— disse o Viriato, levantando-se. — Vocês eu não sei, mas está
na minha hora de dormir. Vamos pra casa, Dol.
— Senta
aí, Vivi — disse a Dolores. — Nós estamos na nossa casa. Os
outros é que têm que ir embora.
Viriato
sentou-se. A Rosane estava irritada.
— É
isso que dá, começar a mexer no passado. De quem foi esta ideia,
afinal?
O
Bruno começou a dizer alguma coisa, mas a Rosane não deixou:
— Com
você eu me acerto em casa!
E
a Dolores, tentando salvar o que ainda havia para ser salvo:
— Outro
cafezinho, gente?
Luís
Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo
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