segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Teoria e método

Google Imagens

Chegou-me uma carta… Cartas eram objetos, hoje obsoletos, escritos com pena, tinta e mata-borrão (quem ainda sabe o que é um mata-borrão?) que, para serem enviadas, exigiam selo, envelope, língua e uma caminhada até o correio. Se o remetente era importante, as cartas eram guardadas e depois da morte do dito eram transformadas em livros de valor histórico. Eu mesmo tenho a correspondência de Albert Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz, umas 500 páginas, e a correspondência que Guimarães Rosa teve com seu tradutor para o alemão, umas 300 páginas, mais as suas cartas para os netos, ilustradas por ele mesmo. Esses objetos pertencem a uma era que está desaparecendo.
Pois — faz tempo — chegou-me uma carta de uma jovem que estava fazendo pós-graduação. O seu assunto eram as estórias que escrevi para crianças. Fiquei lisonjeado. Ela me enviava um longo questionário que tinha por objetivo esclarecer algumas questões que lhe eram obscuras, essenciais para um trabalho científico. Com toda a certeza o questionário passara pelo crivo crítico do orientador. Orientadores, pelo que deles conheço, não permitem que coisa alguma dos seus orientandos seja dada ao público sem o seu nihil obstat... Peguei o questionário com toda a seriedade e logo minha seriedade se transformou em espanto porque eu não sabia as respostas para as perguntas que ela me fazia. Ela falava uma linguagem que eu desaprendera: acadêmica, científica, linguagem que se fala quando se está fazendo ciência, procurando a verdade. Mas quando se inventam estórias não se está procurando a verdade, e sim a beleza. A primeira pergunta era: “Qual é a teoria que o senhor usa para escrever suas estórias?”. Fiquei a matutar: que teoria usei para escrever A menina e o pássaro encantado? E A árvore e a aranha? Percebi que não usara teoria alguma. As estórias simplesmente vieram e se assentaram no meu ombro. Eu só olhei pra elas e copiei. Então minhas estórias não eram objetos científicos. A segunda pergunta era: “Qual é o método que o senhor usa para escrever suas estórias?”. Método é o caminho que as ideias têm de seguir, a marcha das ideias como soldados em parada. Mas as minhas ideias não marcham, elas dançam... E não usei método algum... Essas duas perguntas são obrigatórias para a ciência, cujo objetivo é agarrar um objeto. Teorias e métodos são alçapões para pegar pássaros voantes. Mas estórias, poemas, músicas pertencem à classe das entidades semelhantes às nuvens que não se deixam prender. Elas pousam por vontade própria nos ombros dos escritores, dos poetas, dos músicos. Acho que foi Picasso que disse: “Eu não procuro; eu encontro...”.
Escrevo, mas não tenho nem teoria nem método. Assim escrevo, sem teoria e sem método. Consta que uma pessoa perguntou a Cervantes como ele fazia para escrever. Ele teria respondido: “Para escrever eu me assento à minha mesa, com uma folha de papel, pena, tinteiro, mata-borrão...”. O perguntante o interrompeu: “Não é isso... Quero saber sobre as ideias ...” “Ah!”, Cervantes respondeu, “para isso é preciso ter talento...”
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário