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Chegou-me
uma carta… Cartas eram objetos, hoje obsoletos, escritos com pena,
tinta e mata-borrão (quem ainda sabe o que é um mata-borrão?) que,
para serem enviadas, exigiam selo, envelope, língua e uma caminhada
até o correio. Se o remetente era importante, as cartas eram
guardadas e depois da morte do dito eram transformadas em livros de
valor histórico. Eu mesmo tenho a correspondência de Albert
Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz, umas 500 páginas, e a
correspondência que Guimarães Rosa teve com seu tradutor para o
alemão, umas 300 páginas, mais as suas cartas para os netos,
ilustradas por ele mesmo. Esses objetos pertencem a uma era que está
desaparecendo.
Pois
— faz tempo — chegou-me uma carta de uma jovem que estava fazendo
pós-graduação. O seu assunto eram as estórias que escrevi para
crianças. Fiquei lisonjeado. Ela me enviava um longo questionário
que tinha por objetivo esclarecer algumas questões que lhe eram
obscuras, essenciais para um trabalho científico. Com toda a certeza
o questionário passara pelo crivo crítico do orientador.
Orientadores, pelo que deles conheço, não permitem que coisa alguma
dos seus orientandos seja dada ao público sem o seu nihil
obstat... Peguei o questionário com toda a seriedade e logo
minha seriedade se transformou em espanto porque eu não sabia as
respostas para as perguntas que ela me fazia. Ela falava uma
linguagem que eu desaprendera: acadêmica, científica, linguagem que
se fala quando se está fazendo ciência, procurando a verdade. Mas
quando se inventam estórias não se está procurando a verdade, e
sim a beleza. A primeira pergunta era: “Qual é a teoria que o
senhor usa para escrever suas estórias?”. Fiquei a matutar: que
teoria usei para escrever A menina e o pássaro encantado? E A árvore
e a aranha? Percebi que não usara teoria alguma. As estórias
simplesmente vieram e se assentaram no meu ombro. Eu só olhei pra
elas e copiei. Então minhas estórias não eram objetos científicos.
A segunda pergunta era: “Qual é o método que o senhor usa para
escrever suas estórias?”. Método é o caminho que as ideias têm
de seguir, a marcha das ideias como soldados em parada. Mas as minhas
ideias não marcham, elas dançam... E não usei método algum...
Essas duas perguntas são obrigatórias para a ciência, cujo
objetivo é agarrar um objeto. Teorias e métodos são alçapões
para pegar pássaros voantes. Mas estórias, poemas, músicas
pertencem à classe das entidades semelhantes às nuvens que não se
deixam prender. Elas pousam por vontade própria nos ombros dos
escritores, dos poetas, dos músicos. Acho que foi Picasso que disse:
“Eu não procuro; eu encontro...”.
Escrevo,
mas não tenho nem teoria nem método. Assim escrevo, sem teoria e
sem método. Consta que uma pessoa perguntou a Cervantes como ele
fazia para escrever. Ele teria respondido: “Para escrever eu me
assento à minha mesa, com uma folha de papel, pena, tinteiro,
mata-borrão...”. O perguntante o interrompeu: “Não é
isso... Quero saber sobre as ideias ...” “Ah!”, Cervantes
respondeu, “para isso é preciso ter talento...”
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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