sábado, 13 de outubro de 2018

Reduzida a si mesma

Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”. O que narrarei será meloso? Tem tendência mas então agora mesmo seco endureço tudo. E pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém e não implora socorro: aguenta-se na sua chamada dor com uma dignidade de barão.
É. Parece que estou mudando o modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura. Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que falei. Embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade. E que anjos esvoacem em vespas transparentes em torno de minha cabeça quente porque esta quer se transformar em objeto-coisa, é mais fácil. Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra?
Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar.
Porque escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”. Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assovio no escuro, e passos. Escuridão? Lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. Nunca a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror.
Quero neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzia-se a si. Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim mas pelos menos quero encontrar o mundo e seu Deus. Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.
E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais?
Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

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