Transgredir,
porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi
quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me
ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”. O que
narrarei será meloso? Tem tendência mas então agora mesmo seco
endureço tudo. E pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém
e não implora socorro: aguenta-se na sua chamada dor com uma
dignidade de barão.
É.
Parece que estou mudando o modo de escrever. Mas acontece que só
escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar
dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender
é escrever sobre ela. Escrevo em traços vivos e ríspidos de
pintura. Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis
pedras de que falei. Embora queira que para me animar sinos badalem
enquanto adivinho a realidade. E que anjos esvoacem em vespas
transparentes em torno de minha cabeça quente porque esta quer se
transformar em objeto-coisa, é mais fácil. Será mesmo que a ação
ultrapassa a palavra?
Mas
que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa
é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus
que nos mandou inventar.
Porque
escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim
às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por
causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como
se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”. Sim,
minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas
tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o
escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assovio no escuro,
e passos. Escuridão? Lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e
que escuridão dentro de seu corpo. Nunca a esqueci: jamais se
esquece a pessoa com quem se dormiu. O acontecimento fica tatuado em
marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem
com horror.
Quero
neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma
cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois
reduzia-se a si. Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim
mas pelos menos quero encontrar o mundo e seu Deus. Quero
acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que
vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia
de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado
das coisas neste momento.
E
eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a
pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como
aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever?
Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz
de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira.
Mas quando escrevo não minto. Que mais?
Sim,
não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem
como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa
desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Não, não é fácil
escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas
como aços espelhados.
Ah
que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem
falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me
proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua
elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que
está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros
enlameados apalpar o invisível na própria lama.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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