Sou
feliz pelos amigos que tenho. Um deles muito sofre pelo meu descuido
com o vernáculo. Por alguns anos ele sistematicamente me enviava
missivas eruditas com precisas informações sobre as regras da
gramática, que eu não respeitava, e sobre a grafia correta dos
vocábulos, que eu ignorava. Fi-lo sofrer pelo uso errado que fiz de
uma palavra no último “Quarto de badulaques”. Acontece que eu,
acostumado a conversar com a gente das Minas Gerais, falei em
“varreção” — do verbo “varrer”. De fato, trata-se de um
equívoco que, num vestibular, poderia me valer uma reprovação.
Pois o meu amigo, paladino da língua portuguesa, se deu ao trabalho
de fazer um xerox da página 827 do dicionário, aquela que tem, no
topo, a fotografia de uma “varroa”(sic!) (você não sabe
o que é uma “varroa”?) para corrigir-me do meu erro. E confesso:
ele está certo. O certo é “varrição” e não “varreção”.
Mas estou com medo de que os mineiros da roça façam troça de mim
porque nunca os vi falar de “varrição”. E se eles rirem de mim
não vai me adiantar mostrar-lhes o xerox da página do dicionário
com a “varroa” no topo. Porque, para eles, não é o dicionário
que faz a língua. É o povo. E o povo, lá nas montanhas de Minas
Gerais, fala “varreção”, quando não “barreção”. O que me
deixa triste sobre esse amigo oculto é que nunca tenha dito nada
sobre o que eu escrevo, se é bonito ou se é feio. Toma a minha
sopa, não diz nada sobre ela, mas reclama sempre que o prato está
rachado. A esse respeito, vou lhes contar sobre o homem que confundiu
a mulher com um chapéu, caso clínico relatado por Oliver Sacks. Tem
tudo a ver. Depois.
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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