domingo, 7 de outubro de 2018

Epidólia

E vi um céu novo e uma terra nova; porque o primeiro céu e a primeira terra se foram, e o mar já não é. (Apocalipse, XXI, 1)

Como poderia ter escapado, se há poucos instantes a estreitava de encontro ao ombro?
Manfredo se distraíra por alguns segundos, observando um menino parado em frente às jaulas das onças, quando percebeu que o braço, estendido sobre o encosto do banco, perdera o contato com o corpo de Epidólia. Ainda conservava o calor dele na mão encurvada, a prender o vazio.
Reagia lentamente, incapaz de explicar o que acontecera. Olhava para os lados, atônito, até render-se à evidência do desaparecimento da moça.
A uns dez metros, balançando um bastão curto, Arquimedes, o velho guarda, que o acompanhara do grupo escolar à universidade, deveria saber o rumo que ela tomara. Antes nada perguntasse:
Manfredinho, você conhece meu sistema. Sempre deixo os casais à vontade, procurando ignorar o que eles fazem. Por que vocês brigaram?
Manfredinho é a vó. Será que não crescerei nunca? E não houve briga. — Deixou a explicação pelo meio e gritou: — E - PI - DÓ - LIA ! — No grito ia todo um desespero a substituir a perplexidade dos primeiros momentos.
Atirou-se parque adentro, atravessando-o com uma rapidez que em outra circunstância lhe causaria estranheza. Mesmo assim, calculou ter caminhado mais do que devia.
Passou pelo portão dos fundos, detendo-se no passeio deserto. Nem de longe via caminhar ou correr mulher alguma. O desapontamento quase o levou a retroceder e verificar se Epidólia utilizara a entrada principal do parque para escapar. Percebeu o absurdo da hipótese: se ela houvesse tomado aquela direção, passaria por Arquimedes, e isso não acontecera.
Sentia-se sem condições de raciocinar objetivamente. Desanimado, decidiu regressar à casa. Logo tornou atrás, na decisão, lembrando-se que Epidólia lhe dissera estar hospedada no Hotel Independência, numa cidade vizinha, a cinquenta minutos do lugar onde se encontrava.
Como estivesse de pijama, ficou indeciso se o trocava por um terno. Temeroso de perdê-la caso se atrasasse, resolveu tomar imediatamente um táxi. O automóvel que estacionou a um sinal seu diferia muito dos outros que até a véspera vira circular na Capital. Comprido, os metais brilhantes, oferecia extraordinário conforto. Deu o endereço ao motorista, pedindo-lhe a máxima velocidade.
Os olhos atentos ao velocímetro, a marcar cento e vinte quilômetros, Manfredo já se impacientava por não terem cruzado a zona rural, quando uma freada brusca jogou-o de encontro ao para-brisa. Apalpou a testa, imaginando-se ferido, porém nada de grave ocorrera. Na sua frente estava o hotel. Foi recebido na portaria pelo próprio gerente. Este, cara amarrada, certo de estar atendendo a um hóspede, perguntou-lhe se desconhecia a proibição regulamentar do uso de pijama fora dos alojamentos.
Para dizer a verdade, nunca me hospedei em hotéis, nada sabendo de seus regulamentos. — Veemente, expressando-se de maneira confusa, falava dos motivos de sua presença ali. Só articulou com clareza o nome da pessoa procurada.
O homenzinho ouvia-o emburrado, sem encontrar saída para o problema que defrontava: como impedir a um estranho de apresentar-se em trajes vedados somente aos hóspedes?
Epidólia?
Distante da rotina, seu raciocínio emperrava, sobretudo se estavam em jogo pessoas de condição social acima da sua.
Vagarosamente, superou a indecisão: o rapaz tinha boa aparência e as suas palavras, agressivas ou obscuras (ora, uma mulher desaparecer dos braços de alguém!), não seriam motivadas por um choque emocional. O anel de grau no dedo do desconhecido valeu como argumento definitivo para decidi-lo a prestar informações:
Não a vejo desde a semana passada.
E o fato não o preocupou?
Por que haveria de me preocupar se conheço seus hábitos singulares? Costuma permanecer vários dias sem sair do hotel ou dele se ausenta por extensa temporada. Mesmo procedendo dessa maneira, é correta nos pagamentos e só nos queixamos do péssimo costume que mantém de levar consigo a chave do quarto.
Ela não poderia ter entrado no momento em que o senhor estava fora da portaria?
Impossível. Estive aqui toda a manhã e a quarteira já me prevenira que, por falta de uso, não tem trocado a roupa de cama de Epidólia.
(Onde dormiria?) Manfredo ocultou o ciúme, atribuindo tudo a uma cadeia de equívocos.
Contudo, gostaria de ir lá.
Subiram pela escada e num dos apartamentos do terceiro andar tocaram a campainha. Não sendo atendidos, o hoteleiro abriu a porta, valendo-se da chave mestra. O quarto estava vazio, nenhum vestido nos cabides ou malas em cima dos armários.
Veja! — O gerente chamava-lhe a atenção para uma calcinha manchada de vermelho. — Aquela rata! Só deixou esta porcaria!
Manfredo arrancou-a das mãos impuras, impedindo que elas maculassem aquela peça íntima, a lembrar-lhe intensamente o corpo da amada.
Era sangue, ainda úmido. Prova de que Epidólia estivera ali recentemente. Renascia nele a esperança de encontrá-la e para isso removeria quaisquer obstáculos, procurando-a em todos os recantos da cidade.
O mais simples, porém, seria informar-se primeiro dos lugares que ela costumava frequentar, pois em duas semanas de encontros diários, no parque, nada indagara de sua vida, como se já soubesse tudo ou não houvesse interesse maior pelo acessório, à margem do instante que estavam vivendo.
Talvez o homem que o acompanhava, conhecendo-a há mais tempo, pudesse dar-lhe as indicações precisas.
Deu-as cautelosamente:
Não se zangue comigo, tenho que ser franco. Somente uma pessoa está em condições de informá-lo com segurança. É o Pavão, um marinheiro velho, amante dela. Poderá encontrá-lo num dos botequins da orla marítima.
Orla marítima? A cidade nunca teve mar! O senhor está maluco. E essa história de amante de marinheiro? É uma calúnia, seu crápula! — Aos brados, avançava de punhos cerrados na direção do hoteleiro. Este recuou, pedindo-lhe calma. Esclareceria toda a situação sem o recurso da violência. (O rapaz, além de amnésico, estava transtornado. Precisava ganhar tempo, para escapar de sua fúria.)
Antes eram três localidades distintas: Natércia, Pirópolis e a Capital. Tendo se expandido, encheram os vazios, juntando-se umas às outras. Com Pirópolis veio o mar.
Manfredo se desinteressou do resto, dando-lhe as costas. Decidira retornar à sua residência para trocar de roupa. Depois procuraria o marujo.
No trajeto, confirmou parte do que ouvira. A ausência de vegetação, notada por ele na vinda, testemunhava a união das cidades.

Com o advento de Epidólia a casa se transformara. Desde a varanda e suas grades de ferro, os ladrilhos de desenhos ingênuos e seus crótons, desses que pensava não existirem mais.
Pelas salas circulavam pessoas do interior, hóspedes habituais do avô, antigo fazendeiro. Entre eles e o mofo, a velha tia passeava a cara enrugada, o vestido sujo, amarfanhado. Veio ao encontro do sobrinho, abraçando-o carinhosamente. Com agulha e linha invisíveis, tenta pregar no pijama dele um botão solidamente preso:
Tão desmazelado, o meu menino!
Manfredo acha graça, sem rir, vendo em comparação o estado das roupas dela. Segue para o quarto, nele encontrando mais três camas — os roceiros! Busca um terno e não encontra nenhum dos seus, nem em cima da mesinha de cabeceira o aparelho de barbear, a escova de dentes.
Tia, as minhas coisas?! — grita por tia Sadade, que veio correndo:
Oh! Manfredinho, estão no ginásio, onde poderiam estar?
Sorri: largara o colégio interno havia tanto tempo! Lembrou-se do pai, a lhe recomendar que não desse muita atenção às bobagens da sua cunhada.
Vestiu um dos ternos, cujas medidas se aproximavam do seu corpo, calçou uma botina de elástico.

Teve sorte de encontrar Pavão no terceiro bar em que entrou. Usava longas barbas acinzentadas e delas pendiam moedinhas de ouro, a tilintar a cada movimento seu. O aspecto dele era deplorável: as mãos encardidas, os dedos amarelados pela nicotina, o uniforme da marinha mercante esgarçado. Sentia repugnância só de pensar que ele tocara o corpo de Epidólia.
Às perguntas que lhe eram feitas, respondia com monossílabos, mantendo no canto da boca um cachimbo de espuma.
Moço, você já perguntou muito, mas não disse o seu nome.
Manfredo.
Um nome antigo, bem antigo.
Não, são as roupas. Por sinal, nem me pertencem.
Mau costume, meu rapaz, esse de usar roupas dos outros. A sua história também está muito enrolada.
O senhor não pode compreender. Nós nos amávamos.
Aquela vaca ninfomaníaca? E arranja um trouxa para gostar dela! Dá vontade de rir.
Manfredo descontrolou-se, aguentara demais a grosseria do velho:
Seu devasso, avarento, decrépito! — E cuspiu na cara do marinheiro.
Em resposta recebeu um soco na testa com uma violência dificilmente esperada dos punhos de um homem idoso.
Derrubado ao chão, em meio a pedaços da cadeira espatifada na queda, ainda ouviu:
Não devia ajudar cornos e imbecis, mas procure na casa da frente o pintor. Foi o último amante dela.
Seguiu-se às suas palavras uma estridente gargalhada, que acompanhou Manfredo até o outro lado da rua.

O pintor pediu-lhe desculpas. Só poderia responder o essencial. Padecia de uma caxumba, entranhada no corpo todo, perdoado o exagero. Falavam por si as paredes totalmente ocupadas por retratos de mulheres nuas. Antes que o visitante, desconcertado frente às telas, dissesse qualquer coisa, antecipou-se:
Nos últimos anos só pintei Epidólia. — A voz estava em desarmonia com o seu físico jovem, parecendo vir de alguém envelhecido precocemente. Exprimia dolorosa fadiga, a necessidade de livrar-se de incômodas reminiscências:
Não foi minha amante, apenas modelo — prosseguia com dificuldade crescente. Nada lhe pagava, sabia pouco do seu passado.
A última vez em que a vira?
Sim, lembrava-se inclusive do vestido que usava no dia, ele que só lhe pintara o corpo. Fora na porta da Farmácia Arco-íris, de propriedade de um tio dela.
Fez uma pausa, para recuperar-se do cansaço. Limpou o suor com o lenço:
Sinto que você também a amou muito. Não quer um dos retratos? Pode escolher o melhor ou levar todos. — Parecia mais cansado e o rosto começava a enrugar-se.
Manfredo recusou a oferta, dando uma vaga desculpa. Pensava no escândalo que a nudez do retrato causaria nos hóspedes do avô. Riu, sem que o pintor entendesse a graça.

* * *
A farmácia devia ser do século passado, com grandes vidros contendo líquidos coloridos. Ao lado, potes de porcelana, com os nomes dos medicamentos gravados a ouro. O farmacêutico, um velhinho de terno branco, chinelas de lã, teria quase a idade da botica. Ele mesmo aviava as receitas e atendia a clientela no balcão:
Algum remédio?
Procuro a sua sobrinha, sabe onde posso encontrá-la?
Esteve aqui há poucos dias. Pediu umas pílulas anticoncepcionais e, em razão da minha estranheza, por sabê-la virgem, disse-me ter encontrado o homem que merecia seu corpo.
Como? Se um marinheiro velho acaba de me afirmar o contrário!
Certamente você conversou com o Pavão, pai de Epidólia, tipo ordinário, depravado. Abandonou-a logo após o nascimento, alegando ter sido traído pela esposa, morta durante o parto.
Perdoe-me a insistência: quem mais poderia saber do paradeiro dela?
Ninguém, ou muitos. Ela some e reaparece a cada experiência sentimental. Não resiste ao sortilégio do mar e a ele retorna sempre. É possível que a esta hora já esteja nas docas, abrigada na casa de um de seus amigos, ou se encaminhando para aqui.

Manfredo seguiu pela parte velha do porto, atravessando ruas encardidas, sem prestar atenção à fuligem das paredes, ao calçamento enlameado de barro e óleo. Nada lhe repugnava, nem mesmo o cheiro intenso de frituras de peixe, porque Epidólia por ali caminhara e poderia surgir inesperadamente em uma janela ou sair de um jardim sobraçando flores. A sua imagem crescia, tomava forma, quase adquirindo consistência. Perto e longe, a amada se perdia por detrás do casario.
Batia de porta em porta, perguntava — o coração opresso — ou nada dizendo, apenas vasculhando com os olhos corredores, alpendres e quintais.
O processo era lento, desesperador. Abandona-o. Afasta-se do passeio e vai pelo meio da rua. Acredita que gritando pelo nome ela acudiria. Grita.
Atrás dele ajuntavam-se crianças, formando um cortejo a que em seguida se incorporariam adultos — homens e mulheres, moços e velhos — unidos todos em uníssono grito: Epidólia, Epidólia, Epidólia. Começavam alto. Aos poucos, as vozes desciam de tom, transformando-se em soturno murmúrio, para de novo se altearem em lenta escala.
Chegara à exaustão e o nome da amada, a alcançar absurdas gradações pelo imenso coral, levava-o ao limite extremo da angústia. Apertou o ouvido com as mãos, enquanto o coro se distanciava, até desaparecer. Pirópolis recuara no tempo e no espaço, não mais havia o mar.
O parque readquirira as dimensões antigas, Manfredo pisava uma cidade envelhecida.
Murilo Rubião, in Obra completa

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