E
vi um céu novo e uma terra nova; porque o primeiro céu e a primeira
terra se foram, e o mar já não é. (Apocalipse, XXI, 1)
Como
poderia ter escapado, se há poucos instantes a estreitava de
encontro ao ombro?
Manfredo
se distraíra por alguns segundos, observando um menino parado em
frente às jaulas das onças, quando percebeu que o braço, estendido
sobre o encosto do banco, perdera o contato com o corpo de Epidólia.
Ainda conservava o calor dele na mão encurvada, a prender o vazio.
Reagia
lentamente, incapaz de explicar o que acontecera. Olhava para os
lados, atônito, até render-se à evidência do desaparecimento da
moça.
A
uns dez metros, balançando um bastão curto, Arquimedes, o velho
guarda, que o acompanhara do grupo escolar à universidade, deveria
saber o rumo que ela tomara. Antes nada perguntasse:
— Manfredinho,
você conhece meu sistema. Sempre deixo os casais à vontade,
procurando ignorar o que eles fazem. Por que vocês brigaram?
— Manfredinho
é a vó. Será que não crescerei nunca? E não houve briga. —
Deixou a explicação pelo meio e gritou: — E - PI - DÓ - LIA ! —
No grito ia todo um desespero a substituir a perplexidade dos
primeiros momentos.
Atirou-se
parque adentro, atravessando-o com uma rapidez que em outra
circunstância lhe causaria estranheza. Mesmo assim, calculou ter
caminhado mais do que devia.
Passou
pelo portão dos fundos, detendo-se no passeio deserto. Nem de longe
via caminhar ou correr mulher alguma. O desapontamento quase o levou
a retroceder e verificar se Epidólia utilizara a entrada principal
do parque para escapar. Percebeu o absurdo da hipótese: se ela
houvesse tomado aquela direção, passaria por Arquimedes, e isso não
acontecera.
Sentia-se
sem condições de raciocinar objetivamente. Desanimado, decidiu
regressar à casa. Logo tornou atrás, na decisão, lembrando-se que
Epidólia lhe dissera estar hospedada no Hotel Independência, numa
cidade vizinha, a cinquenta minutos do lugar onde se encontrava.
Como
estivesse de pijama, ficou indeciso se o trocava por um terno.
Temeroso de perdê-la caso se atrasasse, resolveu tomar imediatamente
um táxi. O automóvel que estacionou a um sinal seu diferia muito
dos outros que até a véspera vira circular na Capital. Comprido, os
metais brilhantes, oferecia extraordinário conforto. Deu o endereço
ao motorista, pedindo-lhe a máxima velocidade.
Os
olhos atentos ao velocímetro, a marcar cento e vinte quilômetros,
Manfredo já se impacientava por não terem cruzado a zona rural,
quando uma freada brusca jogou-o de encontro ao para-brisa. Apalpou a
testa, imaginando-se ferido, porém nada de grave ocorrera. Na sua
frente estava o hotel. Foi recebido na portaria pelo próprio
gerente. Este, cara amarrada, certo de estar atendendo a um hóspede,
perguntou-lhe se desconhecia a proibição regulamentar do uso de
pijama fora dos alojamentos.
— Para
dizer a verdade, nunca me hospedei em hotéis, nada sabendo de seus
regulamentos. — Veemente, expressando-se de maneira confusa, falava
dos motivos de sua presença ali. Só articulou com clareza o nome da
pessoa procurada.
O
homenzinho ouvia-o emburrado, sem encontrar saída para o problema
que defrontava: como impedir a um estranho de apresentar-se em trajes
vedados somente aos hóspedes?
— Epidólia?
Distante
da rotina, seu raciocínio emperrava, sobretudo se estavam em jogo
pessoas de condição social acima da sua.
Vagarosamente,
superou a indecisão: o rapaz tinha boa aparência e as suas
palavras, agressivas ou obscuras (ora, uma mulher desaparecer dos
braços de alguém!), não seriam motivadas por um choque emocional.
O anel de grau no dedo do desconhecido valeu como argumento
definitivo para decidi-lo a prestar informações:
— Não
a vejo desde a semana passada.
— E
o fato não o preocupou?
— Por
que haveria de me preocupar se conheço seus hábitos singulares?
Costuma permanecer vários dias sem sair do hotel ou dele se ausenta
por extensa temporada. Mesmo procedendo dessa maneira, é correta nos
pagamentos e só nos queixamos do péssimo costume que mantém de
levar consigo a chave do quarto.
— Ela
não poderia ter entrado no momento em que o senhor estava fora da
portaria?
— Impossível.
Estive aqui toda a manhã e a quarteira já me prevenira que, por
falta de uso, não tem trocado a roupa de cama de Epidólia.
(Onde
dormiria?) Manfredo ocultou o ciúme, atribuindo tudo a uma cadeia de
equívocos.
— Contudo,
gostaria de ir lá.
Subiram
pela escada e num dos apartamentos do terceiro andar tocaram a
campainha. Não sendo atendidos, o hoteleiro abriu a porta,
valendo-se da chave mestra. O quarto estava vazio, nenhum vestido nos
cabides ou malas em cima dos armários.
— Veja!
— O gerente chamava-lhe a atenção para uma calcinha manchada de
vermelho. — Aquela rata! Só deixou esta porcaria!
Manfredo
arrancou-a das mãos impuras, impedindo que elas maculassem aquela
peça íntima, a lembrar-lhe intensamente o corpo da amada.
Era
sangue, ainda úmido. Prova de que Epidólia estivera ali
recentemente. Renascia nele a esperança de encontrá-la e para isso
removeria quaisquer obstáculos, procurando-a em todos os recantos da
cidade.
O
mais simples, porém, seria informar-se primeiro dos lugares que ela
costumava frequentar, pois em duas semanas de encontros diários, no
parque, nada indagara de sua vida, como se já soubesse tudo ou não
houvesse interesse maior pelo acessório, à margem do instante que
estavam vivendo.
Talvez
o homem que o acompanhava, conhecendo-a há mais tempo, pudesse
dar-lhe as indicações precisas.
Deu-as
cautelosamente:
— Não
se zangue comigo, tenho que ser franco. Somente uma pessoa está em
condições de informá-lo com segurança. É o Pavão, um marinheiro
velho, amante dela. Poderá encontrá-lo num dos botequins da orla
marítima.
— Orla
marítima? A cidade nunca teve mar! O senhor está maluco. E essa
história de amante de marinheiro? É uma calúnia, seu crápula! —
Aos brados, avançava de punhos cerrados na direção do hoteleiro.
Este recuou, pedindo-lhe calma. Esclareceria toda a situação sem o
recurso da violência. (O rapaz, além de amnésico, estava
transtornado. Precisava ganhar tempo, para escapar de sua fúria.)
— Antes
eram três localidades distintas: Natércia, Pirópolis e a Capital.
Tendo se expandido, encheram os vazios, juntando-se umas às outras.
Com Pirópolis veio o mar.
Manfredo
se desinteressou do resto, dando-lhe as costas. Decidira retornar à
sua residência para trocar de roupa. Depois procuraria o marujo.
No
trajeto, confirmou parte do que ouvira. A ausência de vegetação,
notada por ele na vinda, testemunhava a união das cidades.
Com
o advento de Epidólia a casa se transformara. Desde a varanda e suas
grades de ferro, os ladrilhos de desenhos ingênuos e seus crótons,
desses que pensava não existirem mais.
Pelas
salas circulavam pessoas do interior, hóspedes habituais do avô,
antigo fazendeiro. Entre eles e o mofo, a velha tia passeava a cara
enrugada, o vestido sujo, amarfanhado. Veio ao encontro do sobrinho,
abraçando-o carinhosamente. Com agulha e linha invisíveis, tenta
pregar no pijama dele um botão solidamente preso:
— Tão
desmazelado, o meu menino!
Manfredo
acha graça, sem rir, vendo em comparação o estado das roupas dela.
Segue para o quarto, nele encontrando mais três camas — os
roceiros! Busca um terno e não encontra nenhum dos seus, nem em cima
da mesinha de cabeceira o aparelho de barbear, a escova de dentes.
— Tia,
as minhas coisas?! — grita por tia Sadade, que veio correndo:
— Oh!
Manfredinho, estão no ginásio, onde poderiam estar?
Sorri:
largara o colégio interno havia tanto tempo! Lembrou-se do pai, a
lhe recomendar que não desse muita atenção às bobagens da sua
cunhada.
Vestiu
um dos ternos, cujas medidas se aproximavam do seu corpo, calçou uma
botina de elástico.
Teve
sorte de encontrar Pavão no terceiro bar em que entrou. Usava longas
barbas acinzentadas e delas pendiam moedinhas de ouro, a tilintar a
cada movimento seu. O aspecto dele era deplorável: as mãos
encardidas, os dedos amarelados pela nicotina, o uniforme da marinha
mercante esgarçado. Sentia repugnância só de pensar que ele tocara
o corpo de Epidólia.
Às
perguntas que lhe eram feitas, respondia com monossílabos, mantendo
no canto da boca um cachimbo de espuma.
— Moço,
você já perguntou muito, mas não disse o seu nome.
— Manfredo.
— Um
nome antigo, bem antigo.
— Não,
são as roupas. Por sinal, nem me pertencem.
— Mau
costume, meu rapaz, esse de usar roupas dos outros. A sua história
também está muito enrolada.
— O
senhor não pode compreender. Nós nos amávamos.
— Aquela
vaca ninfomaníaca? E arranja um trouxa para gostar dela! Dá vontade
de rir.
Manfredo
descontrolou-se, aguentara demais a grosseria do velho:
— Seu
devasso, avarento, decrépito! — E cuspiu na cara do marinheiro.
Em
resposta recebeu um soco na testa com uma violência dificilmente
esperada dos punhos de um homem idoso.
Derrubado
ao chão, em meio a pedaços da cadeira espatifada na queda, ainda
ouviu:
— Não
devia ajudar cornos e imbecis, mas procure na casa da frente o
pintor. Foi o último amante dela.
Seguiu-se
às suas palavras uma estridente gargalhada, que acompanhou Manfredo
até o outro lado da rua.
O
pintor pediu-lhe desculpas. Só poderia responder o essencial.
Padecia de uma caxumba, entranhada no corpo todo, perdoado o exagero.
Falavam por si as paredes totalmente ocupadas por retratos de
mulheres nuas. Antes que o visitante, desconcertado frente às telas,
dissesse qualquer coisa, antecipou-se:
— Nos
últimos anos só pintei Epidólia. — A voz estava em desarmonia
com o seu físico jovem, parecendo vir de alguém envelhecido
precocemente. Exprimia dolorosa fadiga, a necessidade de livrar-se de
incômodas reminiscências:
— Não
foi minha amante, apenas modelo — prosseguia com dificuldade
crescente. Nada lhe pagava, sabia pouco do seu passado.
— A
última vez em que a vira?
— Sim,
lembrava-se inclusive do vestido que usava no dia, ele que só lhe
pintara o corpo. Fora na porta da Farmácia Arco-íris, de
propriedade de um tio dela.
Fez
uma pausa, para recuperar-se do cansaço. Limpou o suor com o lenço:
— Sinto
que você também a amou muito. Não quer um dos retratos? Pode
escolher o melhor ou levar todos. — Parecia mais cansado e o rosto
começava a enrugar-se.
Manfredo
recusou a oferta, dando uma vaga desculpa. Pensava no escândalo que
a nudez do retrato causaria nos hóspedes do avô. Riu, sem que o
pintor entendesse a graça.
*
* *
A
farmácia devia ser do século passado, com grandes vidros contendo
líquidos coloridos. Ao lado, potes de porcelana, com os nomes dos
medicamentos gravados a ouro. O farmacêutico, um velhinho de terno
branco, chinelas de lã, teria quase a idade da botica. Ele mesmo
aviava as receitas e atendia a clientela no balcão:
— Algum
remédio?
— Procuro
a sua sobrinha, sabe onde posso encontrá-la?
— Esteve
aqui há poucos dias. Pediu umas pílulas anticoncepcionais e, em
razão da minha estranheza, por sabê-la virgem, disse-me ter
encontrado o homem que merecia seu corpo.
— Como?
Se um marinheiro velho acaba de me afirmar o contrário!
— Certamente
você conversou com o Pavão, pai de Epidólia, tipo ordinário,
depravado. Abandonou-a logo após o nascimento, alegando ter sido
traído pela esposa, morta durante o parto.
— Perdoe-me
a insistência: quem mais poderia saber do paradeiro dela?
— Ninguém,
ou muitos. Ela some e reaparece a cada experiência sentimental. Não
resiste ao sortilégio do mar e a ele retorna sempre. É possível
que a esta hora já esteja nas docas, abrigada na casa de um de seus
amigos, ou se encaminhando para aqui.
Manfredo
seguiu pela parte velha do porto, atravessando ruas encardidas, sem
prestar atenção à fuligem das paredes, ao calçamento enlameado de
barro e óleo. Nada lhe repugnava, nem mesmo o cheiro intenso de
frituras de peixe, porque Epidólia por ali caminhara e poderia
surgir inesperadamente em uma janela ou sair de um jardim sobraçando
flores. A sua imagem crescia, tomava forma, quase adquirindo
consistência. Perto e longe, a amada se perdia por detrás do
casario.
Batia
de porta em porta, perguntava — o coração opresso — ou nada
dizendo, apenas vasculhando com os olhos corredores, alpendres e
quintais.
O
processo era lento, desesperador. Abandona-o. Afasta-se do passeio e
vai pelo meio da rua. Acredita que gritando pelo nome ela acudiria.
Grita.
Atrás
dele ajuntavam-se crianças, formando um cortejo a que em seguida se
incorporariam adultos — homens e mulheres, moços e velhos —
unidos todos em uníssono grito: Epidólia, Epidólia, Epidólia.
Começavam alto. Aos poucos, as vozes desciam de tom,
transformando-se em soturno murmúrio, para de novo se altearem em
lenta escala.
Chegara
à exaustão e o nome da amada, a alcançar absurdas gradações pelo
imenso coral, levava-o ao limite extremo da angústia. Apertou o
ouvido com as mãos, enquanto o coro se distanciava, até
desaparecer. Pirópolis recuara no tempo e no espaço, não mais
havia o mar.
O
parque readquirira as dimensões antigas, Manfredo pisava uma cidade
envelhecida.
Murilo
Rubião, in Obra completa
Nenhum comentário:
Postar um comentário