De
uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa
delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão
viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para
que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da
esvoaçada magreza. E se for triste a minha narrativa? Depois na
certa escreverei algo alegre, embora alegre por quê? Porque também
sou um homem de hosanas e um dia, quem sabe, cantarei loas que não
as dificuldades da nordestina.
Por
enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelos
menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a história. Comer a
hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não. Isso
será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já
confortáveis.
Agora
não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só
cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de
vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr ao nível
da nordestina. Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me
apresentar de modo convincente às sociedades que muito reclamam de
quem está neste instante mesmo batendo à máquina. Tudo isso, sim,
a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a
palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a
palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra
não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.
Bem, é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e
que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua. Ao mesmo
tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e baixo,
grave e terra, tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu
tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito. E quero
aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham: que existir é
coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é
lógico.
A
ação desta história terá como resultado minha transfiguração em
outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez
alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.
Mas
voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me
entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos
e ríspidos de velhos. E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um
arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar
na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma
delicadeza de borboleta branca. Essa ideia
de borboleta branca vem de que, se a moça vier a se casar,
casar-se-á magra e leve, e, como virgem, de branco. Ou não se
casará? O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto
não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta
linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa.
Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez
porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo
e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu
além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.
Escrevo
por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim
na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou
cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre
a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias.
Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos
fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu
desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.
Clarice
Lispector, in A
hora da estrela
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