sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Como Bertrand Russell foi impedido de lecionar na Faculdade Municipal de Nova York (trecho)

I
Depois da aposentadoria dos dois professores de filosofia, Morris Raphael Cohen e Harry Overstreet, os integrantes do Departamento de Filosofia da Faculdade Municipal de Nova York (College of the City of New York), bem como a administração da instituição, concordaram em convidar um filósofo eminente a preencher uma das posições vagas. O Departamento recomendou que fosse feito um convite a Bertrand Russell, que na época lecionava na Universidade da Califórnia. Essa recomendação foi aprovada com entusiasmo pelo corpo docente e pelo reitor em exercício da faculdade, pelo comitê administrativo do Conselho de Educação Superior e, finalmente, pelo próprio Conselho, que aprova as indicações nesse grau. Ninguém com fama e distinção comparáveis jamais havia lecionado na faculdade municipal. Dezenove dos vinte e dois integrantes do Conselho estiveram presentes à reunião em que a indicação foi discutida, e todos os dezenove votaram a seu favor. Quando Bertrand Russell aceitou o convite, Ordway Tead, presidente do Conselho, enviou-lhe a seguinte carta:

Meu caro professor Russell:
É com um profundo sentimento de privilégio que aproveito esta oportunidade para notificá-lo de sua indicação como professor de filosofia da Faculdade Municipal para o período de 1 o de fevereiro de 1941 a 30 de junho de 1942, em observância à decisão tomada pelo Conselho de Educação Superior em sua reunião do dia 26 de fevereiro de 1940.
Sei que sua aceitação desta indicação trará brilho ao nome e às conquistas do Departamento e da Faculdade, bem como aprofundará e estenderá o interesse da faculdade pelas bases filosóficas da vida humana.

Concomitantemente, o reitor em exercício, Mead, divulgou um informativo à imprensa afirmando que a faculdade tinha a sorte singular de assegurar os serviços de um catedrático de renome mundial como lorde Russell. A data desse acontecimento foi 24 de fevereiro de 1940.
Tendo em vista os desdobramentos posteriores, faz-se necessário enfatizar dois fatos. Bertrand Russell deveria lecionar os seguintes três cursos, e não outro:

Filosofia 13: Estudo dos conceitos modernos de lógica e de sua relação com a ciência, a matemática e a filosofia.
Filosofia 24B: Estudo dos problemas dos fundamentos da matemática.
Filosofia 27: As relações das ciências puras com as aplicadas e a influência recíproca entre a metafísica e as teorias científicas.

Além do mais, na época em que Bertrand Russell foi nomeado, apenas homens podiam assistir a cursos diurnos em matérias de artes liberais na Faculdade Municipal.

II
Quando a indicação de Russell tornou-se pública, o bispo Manning, da Igreja Episcopal Protestante, escreveu uma carta a todos os jornais de Nova York, em que denunciava a ação do Conselho. “O que se pode dizer de faculdades e universidades”, escreveu ele, “que afirmam à nossa juventude ser um professor responsável de filosofia (...) um homem que é propagandista reconhecido de um pensamento contrário à religião e à moral, e que especificamente defende o adultério (...). Será que alguém que se importe com o bem-estar do nosso país estará disposto a ver tais ensinamentos disseminados com a aceitação de nossas faculdades e universidades?” Retomando a ofensiva alguns dias depois, o bispo acrescentou: “Há aqueles que têm tanta confusão moral e mental que nada veem de errado na indicação (...) de alguém que, em seus escritos publicados, disse que ‘fora dos desejos humanos não existe padrão moral’”. Deve-se notar, aliás, que, se fosse requisito dos professores de filosofia rejeitar o relativismo ético em suas diversas formas, como o bispo Manning dava a entender, metade ou mais deles teria de ser sumariamente demitida.
A carta do bispo foi o sinal de uma campanha de difamação e intimidação sem igual na história dos Estados Unidos desde o tempo de Jefferson e Thomas Paine. Os jornais eclesiásticos, a editora Hearst e praticamente todos os políticos democratas juntaram-se ao coro de difamação. A indicação de Russell, dizia The Tablet, veio como um “choque brutal e aviltante para os antigos nova-iorquinos e todos os verdadeiros norte-americanos”. Exigindo que a indicação fosse revogada, a publicação, em seu editorial, descreveu Russell como um “professor de paganismo”, como “o anarquista filosófico e niilista moral da Grã-Bretanha (...) cuja defesa do adultério transformou-se em algo tão detestável que há relatos de um de seus ‘amigos’ falando mal dele”. O jornal jesuíta semanal, America, foi ainda mais educado. Referia-se a Russell como um “defensor da promiscuidade sexual sem nenhuma vitalidade emocional ou intelectual, divorciado e decadente (...) que, no momento está doutrinando os alunos da Universidade da Califórnia (...) a respeito de suas regras libertárias relativas à vida licenciosa em questões de sexo e amor promíscuo e casamento inconstante (...). Esse indivíduo corrupto (...) que traiu sua ‘mente’ e ‘consciência’ (...), esse professor de imoralidade e ateísmo (...) que foi posto no ostracismo por ingleses decentes”. As cartas aos editores desses periódicos eram ainda mais frenéticas. Se o Conselho de Educação Superior não rescindisse seu contrato, dizia um dos correspondentes de The Tablet, então “Areias movediças ameaçam! A serpente está no relva! O verme está ocupado na mente! Se Bertrand Russell fosse honesto pelo menos consigo mesmo, declararia, como fez Rousseau: ‘Não posso olhar para nenhum dos meus livros sem tremer; em vez de instruir, corrompo; em vez de alimentar, enveneno. Mas a paixão me cega, e com todos os meus belos discursos não sou nada além de um canalha’.” A carta era uma cópia de um telegrama enviado ao prefeito LaGuardia. “Imploro à V. Exa.”, o texto prosseguia, “que proteja a nossa juventude da influência perniciosa dele e de sua pena envenenada – um símio de talento, ele é o ministro do mal entre os homens.”
Nesse ínterim, Charles H. Tuttle, integrante do Conselho e leigo de destaque na Igreja Episcopal Protestante, anunciou que, na reunião seguinte do Conselho, no dia 18 de março, ele entraria com uma moção para que a indicação fosse reconsiderada. Tuttle explicou que, na época da indicação, ele não estava a par das opiniões de Russell. Teria votado contra se as conhecesse na época. Faltando apenas alguns dias para a reunião, os fanáticos então fizeram tudo o que podiam para amedrontar os integrantes do Conselho e expandir o catálogo de pecados de Russell. “Nosso grupo”, disse Winfield Demarest, da Liga da Juventude Norte-Americana, “não concorda com a ideia de Russell relativa a alojamentos para ambos os sexos.” Exigindo uma investigação do Conselho de Educação Superior, o Journal & American (hoje Journal-American), da editora Hearst, afirmava que Russell apoiava a “nacionalização das mulheres (...), a gravidez fora do casamento (...) e crianças educadas como penhor de um Estado leigo”. Por meio do dispositivo de fazer citações fora de contexto de um livro escrito havia muitos anos, também classificava Russell como expoente do comunismo. Apesar da oposição bastante conhecida de Russell ao comunismo soviético, ele passou a ser, a partir de então, constantemente citado como “pró-comunista” pelos zelotes. De todos os aspectos dessa campanha de ódio, talvez nenhum tenha sido mais abjeto do que essa paródia deliberada.
Moções exigindo a expulsão de Russell e também, regra geral, a expulsão dos membros do Conselho que haviam votado a favor de sua indicação eram aprovadas diariamente por diversas organizações muito conhecidas por seu interesse na educação, tais como a Filhos de Xavier, a representação em Nova York da Associação Central Católica da América, a Antiga Ordem dos Hibérnicos, os Cavaleiros de Colombo, a Ordem dos Advogados Católicos, a Sociedade do Santo Nome de Santa Joana d’Arc, a Conferência Metropolitana dos Ministros Batistas, a Conferência do Meio-Oeste da Sociedade das Mulheres da Nova Inglaterra e Os Filhos da Revolução Norte-Americana do Estado de Nova York. Essas eram relatadas na imprensa, juntamente com profundas orações da parte de luminares clericais, cujos ataques se centravam cada vez mais em torno de duas acusações: de que Russell era estrangeiro e, portanto, estava legalmente impedido de lecionar na faculdade, e de que suas opiniões a respeito do sexo eram, de algum modo, incentivos ao crime. “Por que não pôr os homens do FBI atrás do seu Conselho de Educação Superior?”, perguntava o reverendo John Schultz, professor de Eloquência Sagrada no Seminário Redentorista em Esopus, Estado de Nova York. “Aos jovens desta cidade”, prosseguia o notável erudito, “ensina-se que não existe tal coisa como a mentira. São ensinados que os assaltos são justificáveis, assim como os roubos e os saques. São ensinados, como Loeb e Leopold foram ensinados na Universidade de Chicago, que crimes cruéis e desumanos são justificáveis.” Desnecessário dizer que todas essas coisas pavorosas estavam intimamente ligadas à indicação de Bertrand Russell – “a mente superior por trás do amor livre, da promiscuidade sexual para os jovens, do ódio aos pais”. Como se isso não bastasse, Russell também foi associado, por outro orador, a “poças de sangue”. Ao falar durante o café da manhã anual de confraternização da Sociedade do Santo Nome do Departamento de Polícia de Nova York, o monsenhor Francis W. Walsh lembrou aos policiais ali reunidos que eles tinham, na ocasião adequada, aprendido o significado completo do chamado “triângulo matrimonial” ao encontrar um dos cantos do triângulo em uma poça de sangue. “Ouso dizer, portanto”, ele prosseguiu, “que os senhores se juntarão a mim ao exigir que qualquer professor culpado de ensinar ou escrever coisas que multiplicarão os palcos sobre os quais essas tragédias se representarão não sejam tolerados nesta cidade nem recebam apoio dos contribuintes (...).”
Ao passo que o prefeito LaGuardia permaneceu em um silêncio bem estudado, diversos políticos do Tammany entraram em ação. Sua concepção de liberdade acadêmica foi muito bem revelada por John F.X. McGohey, primeiro procurador distrital substituto do estado de Nova York e presidente da associação Filhos de Xavier (hoje juiz McGohey), que protestou contra o uso do dinheiro dos contribuintes para “pagar pelo ensino de uma filosofia de vida que nega a Deus, desafia a decência e contradiz completamente o caráter religioso fundamental de nosso país, nosso governo e nosso povo”. No dia 15 de março, três dias antes da próxima reunião marcada do Conselho, o presidente distrital do Bronx, James J. Lyons, uma das principais armas da oposição a Russell, apresentou uma moção na Câmara Municipal pedindo que o Conselho cancelasse a nomeação do professor. A moção foi aprovada por 16 votos contra 5. Deve ficar aqui registrado, como testemunho permanente de sua coragem e indiferença ao sentimento da multidão, que o republicano Stanley Isaacs defendeu vigorosamente Bertrand Russell e o Conselho de Educação Superior. Além de apresentar sua resolução, Lyons anunciou que, na discussão do próximo orçamento, ele apresentaria uma moção para “acabar com a linha que fornece a compensação financeira para esta nomeação perigosa”. O presidente distrital Lyons, no entanto, foi brando e suave, em comparação com o presidente distrital do Queens, George V. Harvey, que declarou, num comício popular, que, se Russell não fosse deposto, instalaria uma moção para que toda a verba de 7.500 milhões de dólares, para a manutenção das faculdades municipais no ano de 1941, fosse suspensa. Se as coisas acontecessem à sua maneira, ele disse, “as faculdades seriam religiosas, americanas, ou seriam fechadas”. No mesmo comício de protesto, outros oradores eminentes e dignos foram ouvidos. Referindo-se a Russell como um “cão”, o vereador Charles E. Keegan observou que, “se tivéssemos um sistema adequado de imigração, esse vagabundo não poderia aportar dentro de mil milhas de distância da nossa terra”. Mas já que desembarcara, a senhorita Martha Byrnes, escrivã do condado de Nova York, disse ao público o que fazer com o “cão”. Russell, bradou ela, deveria ser “coberto de piche e penas e ser expulso do país”. Isso, acredito, é o que os oradores queriam dizer quando falavam em “devoção” e na maneira “americana” de fazer as coisas.
Paul Edwards, in Apêndice do livro Por que não sou cristão, de Bertrand Russell

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