terça-feira, 16 de outubro de 2018

Alba

Ao acordar chamava-se Alba, Aurora ou Lúcia; à tarde Dagmar; à noite Estela. Era alta, muito branca, não desse tom opaco e leitoso, tão comum nas mulheres do norte da Europa, e sim de um leve alvor de mármore, translúcido, sob o qual era possível seguir a impetuosa correnteza do sangue. Já a receava antes de a ver. Ao vê-la perdi a fala. Estendi-lhe a tremer o envelope dobrado ao meio em cujas costas o meu pai escrevera, Para Madame Dagmar, naquela caligrafia de luxo que fazia qualquer apontamento, por mais simples, inclusive uma receita de sopa, parecer a ordem de um califa. Ela abriu-o, retirou lá de dentro, com a ponta dos dedos, um pequeno cartão, e ao deitar-lhe os olhos não foi capaz de conter o riso:
Você é virgem?!
Senti-me desfalecer. Sim, eu completara dezoito anos, e nunca tivera uma mulher. Dagmar conduziu-me pela mão através de um labirinto de corredores e quando dei por isso estava, estávamos ambos, num quarto enorme, assombrado por graves espelhos. Então ela ergueu os braços sem nunca deixar de sorrir e o vestido deslizou-lhe num murmúrio até aos pés:
A castidade é uma agonia inútil, garoto, eu corrijo-a com prazer.
Imaginei-a com o meu pai na penumbra afogueada daquele mesmo quarto. Foi um relâmpago, uma revelação, vi-a, multiplicada pelos espelhos, soltar o vestido e libertar os seios, vi-lhe as ancas largas, senti-lhe o calor do sangue quente, e vi o meu pai, vi as mãos poderosas do meu pai. Ouvi a sua gargalhada de homem maduro a estalar contra a pele dela, e a palavra chula. Vivi aquele exato instante, milhares, milhões de vezes, com terror e com asco. Vivi-o até ao último dos meus dias.

Ocorre-me às vezes um infeliz verso cujo autor não recordo. Provavelmente sonhei-o. Será talvez o refrão de um fado, de um tango, de algum velho samba que escutei em criança:
O pior pecado é não amar.”
Houve muitas mulheres na minha vida mas receio não ter amado nenhuma. Não com paixão. Não, talvez, como o exige a natureza. Penso nisto com horror. A minha condição atual será – atormenta-se a suspeita – um castigo irônico. Ou é isso, ou foi simples distração.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passado

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