Um
bairro popular, uma rua como outras e ao fundo uma casa com jardim.
São dois andares de casa velha com divisões espaçosas e tectos
altos. Cinco quartos, uma sala de jantar, uma cozinha, duas varandas
e uma sala com livros. O jardim é quadrado, delimitado por um muro
baixo e sebes bem tratadas. No meio do jardim, descaído sobre a
esquerda da casa, está um pequeno moinho vermelho que chia quando
quer.
A
tarde é fria e cinzenta, como muitas tardes de Julho em Sueson
Birea. O pequeno Jorge não pensa no frio, está deitado sobre a erva
e olha para as formigas. Ninguém se atreveria a adivinhar o que
pensa. Norah, a irmã, corre pelo jardim atrás de um animal que ele
inventou. Jorge gosta de inventar animais, Norah de correr atrás
deles. Um cão de três pernas com bigodes de gato e rabo de burro,
quando está longe sopra como o vento, de perto não há quem o saiba
ouvir. Norah admira o irmão e, por mais que tente, não vê o que
ele vê. É talvez dos óculos que ele usa, tem mais olhos do que ela
e vê coisas que mais ninguém consegue ver.
De
uma janela do primeiro andar, a avó Fanny observa o jardim e os
netos. Uma estranha sensação percorre-lhe o corpo, como um arrepio
ao contrário, um conforto descontrolado. É uma avó viúva, cheia
de histórias que os netos gostam de ouvir. Os netos ocupam-lhe
vazios deixados pelo marido, um homem que morreu numa guerra oblíqua,
uma guerra sem ideais ou talvez com demasiados; uma guerra de homens
que querem contra homens que também querem, como são sempre as
guerras. Em breve soarão as quatro horas e a avó Fanny descerá as
escadas para anunciar o chá que tomarão juntos à mesa da cozinha.
Jorge
vai olhando as formigas e faz traços num caderno. Sempre que aprende
algo novo, Jorge faz traços no caderno. A avó chama-os e o cão de
três patas foge para longe. Norah fica triste por alguns segundos,
mas depois pensa no lanche e esquece-se. Corre com o irmão para
dentro e sentam-se à mesa. Enquanto comem, a avó Fanny põe-se ao
lume e canta baixinho uma canção de guerra e de homens perdidos.
Do
outro lado da rua, Roberto saiu de casa para não ouvir uma
discussão. Tem vestido um casaco mal remendado e encolhe-se a cada
rajada de vento. Senta-se no passeio e olha em frente, fixando o
moinho vermelho da casa de Jorge. Segue Norah com os olhos sem
perceber a que brinca e depois vê a avó Fanny abrir a porta e
chamar os netos. Roberto sente o peito apertado e os ombros que
tremem. Frio por dentro e frio por fora. De sua casa chegam gritos
com o vento, gritos que não o deixam pensar em nada, nem sequer no
que sente, muito menos nisso.
O
bairro é popular, a rua banal e há uma única casa com jardim.
Nuno
Camarneiro, in
No meu peito não
cabem pássaros
Nenhum comentário:
Postar um comentário