“Varredor
de rua fala grego.”
Cotidiano,
20 mar. 1997
Cansado
depois de um dia de exaustivo trabalho, o varredor de rua que falava
grego adormeceu e teve um sonho. Estava de novo na mesma avenida que
havia varrido só que, por algum ato maligno, o lixo que ele
recolhera havia voltado: as sarjetas estavam cheias de papéis, de
garrafas vazias, de restos de comida. Desanimado, ele olhava aquilo
sem saber o que fazer quando de repente avistou, saindo das sombras
da noite, três vultos. Três homens vestindo túnicas gregas, o que,
fora do período carnavalesco, não deixava de chamar a atenção. O
primeiro impulso do varredor foi sair correndo – só lhe faltava
ouvir reclamações daqueles estranhos tipos sobre a sujeira. Os
três, porém, mostravam-se amistosos. Falando em grego, informaram
que tinham vindo de um passado longínquo e de um país igualmente
longínquo para conhecer uma pessoa que, embora simples, dominava um
idioma tão erudito. Cada vez mais intrigado, o varredor perguntou
quem eram.
– Eu
me chamo Sócrates – disse o homem. – E estes aqui são Platão e
Aristóteles.
Com
isto, teve início uma animada conversa, que se prolongaria por toda
a noite. Os três filósofos queriam saber a opinião do varredor a
respeito de suas obras. Ele não se fazia de rogado. Para Sócrates,
por exemplo:
– Esta
história de “só sei que nada sei’’ não está mais com nada,
Sócrates. Isto é conversa de cara querendo escapar da Justiça.
Hoje em dia as pessoas querem saber das coisas. Além disto, aquela
coisa de ensinar filosofia caminhando pelos bosques acabou. Você
agora tem de se ligar na Internet.
Para
Platão, ele também tinha uma advertência:
– Essa
coisa de amor platônico acabou, meu amigo. Agora é pão, pão,
queijo, queijo. Ou seja: ajoelhou, tem de rezar. Percebe o que estou
dizendo?
Platão
não percebia muito bem, mas prometeu pensar no assunto. Já
Aristóteles, embaraçado, resolveu desviar a conversa para a
biologia – e se deu mal. O varredor não o poupou de suas críticas:
– Há
muito tempo eu estava para lhe dizer, Aristóteles, que aquela teoria
da geração espontânea, de bichos nascendo do lixo, já era. Olha,
eu trabalho com lixo há muito tempo e posso garantir: bicho, aqui,
só os que já existiam. Agora, se você me falar de clonagem é
outro papo.
Os
filósofos, muito impressionados, agradeceram os conselhos e
perguntaram o que podiam fazer pelo homem. O varredor não teve
dúvidas:
– Vocês
podiam me ajudar a recolher esse lixo.
Mas
isso, nem em sonho. Filosofia remove bem os entulhos do pensamento.
Lixo propriamente dito é outro departamento.
Moacyr
Scliar, in O imaginário cotidiano
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