A
memória por vezes é uma maldição. Já falei sobre meu querido
amigo Amilcar Herrera, que me confessou: “Eu desejaria, um dia,
acordar havendo me esquecido do meu nome...”. Não entendi.
Esquecer o próprio nome deve ser uma experiência muito estranha. Aí
ele explicou: “Quando eu me levanto e sei que meu nome é
Amilcar Herrera, sei também tudo o que se espera de mim. O meu nome
diz o que devo ser, o que devo pensar, o que devo falar. Meu nome é
uma gaiola em que estou preso. Mas se, ao acordar, eu tiver me
esquecido do meu nome, terei me esquecido também de tudo que se
espera de mim. Se nada se espera de mim estou livre para ser aquilo
que nunca fui. Começarei a viver minha vida a partir de mim mesmo e
não a partir do nome que me deram e pelo qual sou conhecido”.
Entendi na hora e fiz ligação com algo que Alberto Caeiro escreveu:
“ Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de
lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os
sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me
e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a natureza
produziu ”. Roland Barthes, na sua famosa “Aula”, também
disse estar se entregando à desaprendizagem do aprendido para
livrar-se das sucessivas sedimentações dos saberes que, com a
passagem do tempo, vão se depositando em nossos corpos.
Aconteceu
comigo, faz anos: sem nenhum esforço, sem que eu quisesse,
repentinamente, eu me esqueci. Tive um ataque de amnésia. Não me
esqueci do meu nome nem do nome das pessoas, nem das ideias.
Esqueci-me dos espaços. Coisa semelhante já havia acontecido com
uma querida amiga, professora de neuroanatomia, doutora nos caminhos
complicadíssimos do sistema nervoso. Acordou, olhou em volta e
desconheceu. Que lugar é este? Onde estou? Foi até a porta e a
abriu cuidadosamente. Olhou para um lado, olhou para o outro: um
longo corredor com portas. Podia ser um hotel. Ou um mosteiro. Não
teve coragem de sair e perguntar: “Por favor, digam-me onde
estou!”. O outro morreria de susto. Entrou e fechou a porta.
Resolveu pesquisar. Abriu a bolsa. Lá estava o passaporte. Dólares.
Estava num país estrangeiro. Carimbo de Portugal. Estava em
Portugal. Mas onde? Para quê? Lembrou-se de um amigo. Telefonou-lhe.
“Está lá?” Dali a pouco lá estava o amigo para salvá-la. A
amnésia durou pouco. Recuperou a memória. O que a causou? Os exames
nada revelaram.
Assim
aconteceu comigo. De repente, eu perdi a noção do espaço.
Desconheci caminhos. Fechava as portas quando deveria abri-las. Ia
para a direita quando deveria ir para a esquerda. Felizmente eu não
estava só. Me levaram para o hospital com medo de que estivesse
tendo algo grave, por exemplo, um AVC. Mas eu estava em saúde
perfeita. Passado algum tempo, voltei ao mundo meu conhecido.
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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