sábado, 22 de setembro de 2018

Sobre a Memória

A memória por vezes é uma maldição. Já falei sobre meu querido amigo Amilcar Herrera, que me confessou: “Eu desejaria, um dia, acordar havendo me esquecido do meu nome...”. Não entendi. Esquecer o próprio nome deve ser uma experiência muito estranha. Aí ele explicou: “Quando eu me levanto e sei que meu nome é Amilcar Herrera, sei também tudo o que se espera de mim. O meu nome diz o que devo ser, o que devo pensar, o que devo falar. Meu nome é uma gaiola em que estou preso. Mas se, ao acordar, eu tiver me esquecido do meu nome, terei me esquecido também de tudo que se espera de mim. Se nada se espera de mim estou livre para ser aquilo que nunca fui. Começarei a viver minha vida a partir de mim mesmo e não a partir do nome que me deram e pelo qual sou conhecido”. Entendi na hora e fiz ligação com algo que Alberto Caeiro escreveu: “ Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a natureza produziu ”. Roland Barthes, na sua famosa “Aula”, também disse estar se entregando à desaprendizagem do aprendido para livrar-se das sucessivas sedimentações dos saberes que, com a passagem do tempo, vão se depositando em nossos corpos.
Aconteceu comigo, faz anos: sem nenhum esforço, sem que eu quisesse, repentinamente, eu me esqueci. Tive um ataque de amnésia. Não me esqueci do meu nome nem do nome das pessoas, nem das ideias. Esqueci-me dos espaços. Coisa semelhante já havia acontecido com uma querida amiga, professora de neuroanatomia, doutora nos caminhos complicadíssimos do sistema nervoso. Acordou, olhou em volta e desconheceu. Que lugar é este? Onde estou? Foi até a porta e a abriu cuidadosamente. Olhou para um lado, olhou para o outro: um longo corredor com portas. Podia ser um hotel. Ou um mosteiro. Não teve coragem de sair e perguntar: “Por favor, digam-me onde estou!”. O outro morreria de susto. Entrou e fechou a porta. Resolveu pesquisar. Abriu a bolsa. Lá estava o passaporte. Dólares. Estava num país estrangeiro. Carimbo de Portugal. Estava em Portugal. Mas onde? Para quê? Lembrou-se de um amigo. Telefonou-lhe. “Está lá?” Dali a pouco lá estava o amigo para salvá-la. A amnésia durou pouco. Recuperou a memória. O que a causou? Os exames nada revelaram.
Assim aconteceu comigo. De repente, eu perdi a noção do espaço. Desconheci caminhos. Fechava as portas quando deveria abri-las. Ia para a direita quando deveria ir para a esquerda. Felizmente eu não estava só. Me levaram para o hospital com medo de que estivesse tendo algo grave, por exemplo, um AVC. Mas eu estava em saúde perfeita. Passado algum tempo, voltei ao mundo meu conhecido.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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