quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Será que a religião é capaz de curar nossos problemas? [I]

A humanidade corre perigo mortal, e o medo, tanto hoje como no passado, está levando os homens a buscar refúgio em Deus. Por todo o Ocidente há uma retomada generalizada da religião. Nazistas e comunistas desprezaram o cristianismo e fizeram coisas que deploramos. É fácil concluir que o repúdio do cristianismo por parte de Hitler e do governo soviético é, pelo menos em parte, a causa de nossas preocupações e que, se o mundo retornasse ao cristianismo, nossos problemas internacionais estariam resolvidos. Acredito que esse seja um delírio completo, derivado do terror. E penso que seja um delírio perigoso, porque desencaminha homens cujo raciocínio de outro modo poderia ser proveitoso e, portanto, coloca-se como obstáculo a uma solução válida.
A questão em apreço não diz respeito apenas ao presente estado do mundo. É uma questão muito mais geral, que vem sendo debatida há muitos séculos. É a questão de saber se as sociedades são capazes de terem a mínima moral se não forem auxiliadas pela religião dogmática. Eu, pessoalmente, não penso que a dependência da moral em relação à religião seja nem de longe tão religiosa quanto as pessoas julgam ser. Chego a pensar que algumas virtudes muito importantes são encontradas com mais probabilidade entre aqueles que rejeitam os dogmas religiosos do que entre aqueles que os aceitam. Penso que isso se aplica principalmente à virtude da verdade ou da integridade intelectual. Por integridade intelectual, refiro-me ao hábito de decidir questões aflitivas de acordo com as evidências, ou de deixá-las sem resposta quando as evidências forem inconclusivas. Essa virtude, apesar de ser subestimada por quase todos os adeptos de qualquer sistema dogmático, é, para mim, de importância social muito maior e tem muito mais propensão a beneficiar o mundo do que o cristianismo ou qualquer outro sistema organizado de crenças.
Consideremos, por um instante, de que modo as regras morais passaram a ser aceitas. As regras morais são, grosso modo, de dois tipos: há aquelas que não têm qualquer embasamento além da crença religiosa; e há aquelas que têm uma base óbvia na utilidade social. Na Igreja Ortodoxa Grega, o padrinho e a madrinha de uma criança não podem ser casados. Para tal regra, evidentemente, existe apenas uma base teológica; e, se você julgar que essa regra é importante, terá plena razão ao dizer que a decadência da religião deve ser condenada, porque levará ao descumprimento de tal regra. Mas não é esse tipo de regra moral que está em questão. As regras morais em questão são aquelas para as quais existe justificativa social, independentemente da teologia.
Tomemos o roubo como exemplo. Uma comunidade em que toda a gente roube é inconveniente para todos, e é óbvio que a maior parte das pessoas obtém algo mais parecido com o tipo de vida que deseja em uma comunidade na qual os roubos são raros. Mas, na ausência de leis, moral e religião, surge uma dificuldade: para cada indivíduo, a comunidade ideal seria aquela em que todos os outros fossem honestos e ele, o único ladrão. Segue-se daí que uma instituição social é necessária para que o interesse do indivíduo esteja de acordo com aquele da comunidade. Isso é efetivado, com mais ou menos sucesso, pelo direito penal e pela polícia. Mas os criminosos nem sempre são apanhados, e a polícia pode ser indevidamente tolerante com os poderosos. Se as pessoas puderem ser persuadidas de que existe um Deus que punirá o roubo, mesmo quando a polícia falhar, parece provável que essa crença virá a promover a honestidade. Dada uma população que já acredite em Deus, ela logo acreditará que Deus proibiu o roubo. A utilidade da religião, neste sentido, é ilustrada pela história do vinhedo de Naboth, onde o ladrão é o rei, que está acima da justiça terrena.
Não negarei que entre comunidades semicivilizadas do passado tais considerações devem ter ajudado a promover uma conduta socialmente desejável. Mas, no presente, o bem que pode derivar do fato de se atribuir origem religiosa à moral está ligado de maneira tão inseparável a males gravíssimos que o bem se torna, comparativamente, insignificante. À medida que a civilização progride, as sanções terrenas se tornam mais garantidas e as sanções divinas, menos. As pessoas veem cada vez mais razão para pensar que, se roubarem, serão apanhadas, e cada vez menos razões para pensar que, se não forem apanhadas, Deus as punirá, de qualquer maneira. Hoje em dia é difícil até mesmo pessoas altamente religiosas acreditarem que irão para o inferno se roubarem. Elas imaginam que poderão se arrepender a tempo, e que, de qualquer maneira, o inferno já não é mais tão certo nem tão quente quanto costumava ser. A maior parte das pessoas nas comunidades civilizadas não rouba, e acredito que o motivo mais comum seja a punição aqui na terra. Essa percepção deriva do fato de que em uma área de garimpo durante uma corrida do ouro, ou em qualquer comunidade tão desordenada quanto essa, quase todos roubam.
Mas, dirão vocês, apesar de a proibição teológica ao roubo já não ser tão necessária, de qualquer modo ela não faz mal algum, já que todos desejamos que ninguém roube. Mas o problema é que, assim que os homens passam a duvidar da teologia que receberam, esta passa a ser apoiada por meios odiosos e prejudiciais. Quando se acredita que uma teologia é necessária à virtude, e se pessoas que fazem questionamentos sinceros não veem razão para acreditar que tal teologia é verdadeira, as autoridades se empenharão para desestimular o questionamento sincero. Em séculos passados, isso era feito lançando essas pessoas questionadoras à fogueira. Na Rússia, ainda se usam métodos pouco melhores do que esse; mas, nos países ocidentais, as autoridades aperfeiçoaram maneiras um tanto mais brandas de persuasão. Destas, talvez as escolas sejam a mais importante: os jovens devem ser preservados de ouvir os argumentos a favor das opiniões que as autoridades não apreciam, e aqueles que, ainda assim, insistirem em mostrar disposição para o questionamento incorrerão no desagrado social e, se possível, se sentirão repreensíveis moralmente. Dessa maneira, qualquer sistema de moral que tenha base teológica se transforma em uma das ferramentas por meio das quais os detentores do poder conservam sua autoridade e prejudicam o vigor intelectual dos jovens.
Encontro entre muitas pessoas, hoje em dia, uma indiferença à verdade que só posso considerar extremamente perigosa. Quando as pessoas argumentam, por exemplo, a favor do cristianismo, não dão, como Tomás de Aquino, razões para supor que existe um Deus e que Ele expressou seu desejo por meio das Escrituras. Em vez disso, argumentam que, se as pessoas pensarem assim, agirão melhor do que se não pensarem. Portanto, não devemos nos permitir – segundo o que essas pessoas defendem – fazer especulações a respeito da existência de Deus. Se, num momento em que a guarda estiver baixa, a dúvida mostrar a face, é necessário suprimi-la com vigor. Se o pensamento justo é causa de dúvida, devemos evitar o pensamento justo. Se os expositores oficiais da ortodoxia dizem que é diabólico casarmos com a irmã de nossa esposa falecida, precisamos acreditar nisso, pela manutenção da moral. Se nos disserem que os métodos contraceptivos são um pecado, precisamos aceitar essa imposição, por mais óbvio que pareça que, sem o controle de natalidade, o desastre é certeiro. Logo que qualquer crença é considerada importante por algum motivo que não a verdade, seja lá qual ele for, toda uma lista de males está pronta para vir à tona. O desestímulo ao questionamento, que já mencionei antes, é o primeiro deles, mas, com toda a certeza, outros se seguirão a este. Posições de autoridade serão abertas aos ortodoxos. Registros históricos deverão ser falsificados se lançarem dúvidas sobre opiniões recebidas. Cedo ou tarde, tudo o que não for ortodoxo será considerado crime que deve ser resolvido com a fogueira, o expurgo ou o campo de concentração. Sou capaz de respeitar os homens que argumentam que a religião é verdadeira e que, portanto, deve-se acreditar nela, mas só posso sentir uma profunda aversão moral por aqueles que dizem ser necessário acreditar na religião porque ela é útil e que o ato de perguntar-se se ela é verdadeira ou não é perda de tempo.
É contumaz, entre os defensores do cristianismo, considerar o comunismo algo muito diferente do cristianismo e contrastar seus males com as supostas bênçãos desfrutadas pelas nações cristãs. Isso me parece um erro profundo. Os males do comunismo são os mesmos que existiam no cristianismo durante a Idade da Fé. O Ogpu só difere quantitativamente da Inquisição. Suas crueldades são do mesmo tipo, e os danos que causa à vida moral e intelectual dos russos são do mesmo tipo que foram causados pelos inquisidores, sempre que prevaleceram. Os comunistas falsificam a história, e a Igreja fez a mesma coisa até o Renascimento. Se a Igreja hoje não é tão má quanto o governo soviético, isso se deve à influência daqueles que a atacaram: do Concílio de Trento até hoje, todas as melhorias que foram efetuadas se devem a seus inimigos. Existem muitas pessoas que fazem objeção ao governo soviético por não gostar de sua doutrina econômica comunista, mas isso o Kremlin compartilha com os primeiros cristãos, os franciscanos e a maior parte dos hereges cristãos medievais. A doutrina comunista tampouco se restringia aos hereges: Sir Thomas Moore, um mártir ortodoxo, fala do cristianismo como comunístico e diz que esse era o único aspecto da religião cristã que a recomendava aos utópicos. Não é a doutrina soviética, em si, que pode ser considerada perigosa com justeza. É a maneira como essa doutrina é vista. É encarada como uma verdade sagrada e inviolável, de modo que duvidar dela é pecado e merece o mais severo dos castigos. O comunista, assim como o cristão, acredita que sua doutrina é essencial à salvação, e é essa crença que torna a salvação possível para ele. São as similaridades entre o cristianismo e o comunismo que os tornam incompatíveis entre si. Quando dois homens de ciência discordam, eles não invocam o braço secular; esperam até que haja mais evidências para resolver a questão, porque, na posição de homens de ciência, sabem que nenhum deles é infalível. Mas, quando dois teólogos discordam, já que não existem critérios a que possam recorrer, não há nada além de ódio mútuo e apelo à força, aberto ou dissimulado. O cristianismo, reconheço, hoje causa menos mal do que costumava causar; mas isso acontece porque se acredita nele com menos fervor. Talvez, com o tempo, a mesma mudança venha a se dar em relação ao comunismo; e, se isso acontecer, essa crença perderá muito daquilo que a torna detestável. Mas, se no Ocidente prevalecer a visão de que o cristianismo é essencial à virtude e à estabilidade social, o cristianismo irá mais uma vez adquirir os vícios que tinha na Idade Média; e, ao ficar cada vez mais parecido com o comunismo, será cada vez mais difícil reconciliar-se com ele. Não é por esse caminho que o mundo poderá ser salvo do desastre.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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