Já
fazia algum tempo que eu estava a pensar num aprendizado extremamente
complicado que acontece sem que disso nos apercebamos: somos
desenhadores de mapas. A cabeça é um arquivo de mapas. Para ir do
quarto para a cozinha, a criança consulta o mapa de sua casa que ela
desenhou na sua cabeça. Caminha sem cometer erros. Também os
adultos: gavetas, armários, caixas, álbuns. Por causa do mapa da
casa que temos na cabeça, ao necessitar de uma agulha, de um lápis,
de um martelo, de um remédio, não saímos a procurar a esmo. Vamos
diretamente ao lugar indicado pelo mapa. Vêm depois os mapas da
redondeza, da cidade, ruas, praças, bares, restaurantes, farmácias,
hospitais — tudo organizado. É dizer o nome de um lugar para que o
computador espacial cerebral trace imediatamente o caminho para se
chegar até lá. Cidades, estradas, país. O universo. Nos céus, as
constelações. Norte, sul, leste, oeste. Direções. Os navegadores
de antigamente viam as rotas na terra refletidas nas estrelas dos
céus. Até a Lua, até Marte... Sem os mapas mentais, somos crianças
perdidas numa cidade grande desconhecida.
A
minha amnésia passou, mas ficou a pergunta: o que a causou? Fui a um
neurologista... Um neurologista é, antes de mais nada, uma pessoa
que sabe os mapas do sistema nervoso. Porque o sistema nervoso em
tudo se parece com uma cidade, com suas ruas, sinais, tráfego, mão,
contramão, semáforos, engarrafamentos, colisões... Ele pediu que
eu fizesse um exame chamado “ressonância magnética”. Eu já o
havia feito uma vez, por causa de umas tonturas. Não dói nada. Mas
é terrível! Não pelo que acontece de fato, mas pelo que se
imagina. Colocam a gente deitado numa mesa, cabeça imobilizada com
esparadrapos, e nos enfiam num tubo bem apertado, como se fosse uma
urna funerária. Aí começa uma barulheira sem fim, marteladas,
britadeiras, metralhadoras. Quem não está bem da cabeça corre o
risco de entrar em pânico. Mas isso já está previsto: colocam na
mão da gente um botão a ser apertado caso se sinta na iminência de
ficar louco. Eu quase apertei o botão na primeira vez. O que me
salvou foi a imaginação: comecei a pensar asneiras e besteiras. Na
segunda vez foi mais fácil porque já fui preparado. Resolvi fechar
os olhos e imaginar que estava na minha cama, luz apagada, olhos
fechados — e o que eu iria ouvir seriam sonhos. Tratei de entrar
nos sonhos. Bateu marreta e me vi de marreta na mão amassando
automóveis num ferro-velho. Britadeiras? Lá estava eu com uniforme
da prefeitura perfurando o asfalto. Metralhadora? Peguei uma e saí
atirando como se fosse o demolidor do futuro. Assim, vivi
virtualmente aventuras terríveis que só se tem quando se vai a um
playcenter. Porque não é para isso que se vai a um playcenter, para
se ter medo e sofrer? E até fiquei triste quando a enfermeira
anunciou que o exame havia chegado ao fim. Saí da urna funerária
revigorado, adrenalizado e cheio de ideias novas. O terrível não
foi o que o exame revelou sobre a minha amnésia. O terrível foi o
diagnóstico, igual ao do exame anterior: “Normal, para a idade”.
Esse diagnóstico, afirmo, é mais traumático e humilhante que a
amnésia.
“Agora
falando sério”, como na música do Chico: acho que os médicos
deveriam preparar os pacientes, contando-lhes o que os aguarda, para
que eles se munam de orações, terços, patuás, mantras, santos
protetores, espíritos de luz, imaginação, a fim de espantar os
fantasmas do exame. Como já disse: o terror não se encontra na
coisa física. O terror se encontra na imaginação. Um amigo
querido, segundo o que me relatou a sua viúva, tentou fazer o dito
exame três vezes e não aguentou. Morreu sem diagnóstico.
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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