Creio
ter sido em casa de Fernando Sabino, há uns vinte verões atrás
que, discorrendo a conversa sobre o amor, entraram de repente os
circunstantes em considerações fenomenológicas da maior
pertinência, a propósito desse caso patológico que é um homem
apaixonado. O tipo foi, de início, estudado sob todos os ângulos; e
como a maioria dos circunstantes falava com conhecimento de causa - e
quanta! - chegou-se a várias conclusões sobre as quais não me
estenderei de medo que o assunto vaze do retângulo a que tenho
direito nesta página.
Que
o homem apaixonado é um doente, disso não nos ficou a menor dúvida.
Doente mesmo no duro, tal um portador do mal de Hansen ou da moléstia
de Basedow. Como sob a ação de um vírus qualquer letal, seu
cérebro começa a funcionar de um modo totalmente peculiar. Torna-se
ele, para princípio de conversa, mais policial que um agente da
antiga Gestapo, para não trazer o assunto mais próximo, passando a
julgar o ser amado, quando fora do seu campo visual (e por vezes
também dentro dele) capaz de qualquer traição. Para o homem
apaixonado, a mulher amada é o centro do mundo e da atenção geral.
Todos os homens, por princípio, dão em cima dela. Se ela olha não
importa quão casualmente para um outro varão na rua, está dando
bola. Se não olhou é porque sofreu impacto: não ama o bastante
para enfrentar com naturalidade a cobiça do sexo oposto; trata-se de
uma fraca, uma venal, uma completa... - nem é bom falar! Enfim, para
o homem apaixonado a mulher amada é, na fase da paixão, um misto de
Bernadette e Lucrécia Bórgia. Nada mais irreal que a sua realidade,
pois que se tem saudade dela em sua presença e há ocasiões em que
se quer a sua morte para que se possa ter paz - e não há paz em sua
ausência. A mulher amada é o paradoxo vivo, o fogo que arde sem
se ver, a ferida que dói e não se sente, o contentamento
descontente de que fala Camões que, esse sim, sabia o que era o
amor.
A
partir de uma diagnose bastante completa do assunto, começou-se a
pensar o que se poderia fazer em beneficio do homem apaixonado, esse
bateau ivre despenhado na torrente, esse sonâmbulo a vagar no espaço
cósmico, essa nota extrema e lancinante acima de todas as pautas da
emoção humana. Ficou de início deliberado que ele deveria usar uma
qualquer marca distintiva: talvez um sapato de cada cor, ou uma
gravata que acendesse como a dos mágicos, ou andar sobre pernas de
pau... - enfim, uma característica que o tornasse conspícuo aos
olhos dos míseros mortais entre os quais é obrigado a viver.
Acabamos optando por uma bengalinha como a dos cegos - só que, em
vez de branca, vermelha, da cor da paixão; pois um dos grandes
riscos que corre o homem apaixonado é o tráfego, em meio ao qual
transita como se fosse transparente.
Mas
ficou verificado que a bengalinha poderia prestar-se a grandes
contrafações por parte de inúmeros vigaristas que, sabedores de
suas regalias, não hesitariam em obtê-la por meios ilícitos. O
melhor, concluímos, seria criar uma nova autarquia, o Instituto dos
Apaixonados (com a sigla IDAP), a cujos sócios seria fornecida uma
carteirinha; cuja carteirinha daria prioridade em telefones públicos,
direito a “espetar” em bares, proteção especial da polícia em
caso de briga e uma série de outras prerrogativas, como entrada
grátis nos cinemas mais escuros da cidade, direito a expulsar
pessoas dos bancos de parques e jardins, e etc.
Mas
qual a entidade para caracterizar o homem verdadeiramente apaixonado?
E quais as habilitações necessárias à constituição de uma junta
de psicólogos capazes de atestar ser uma pessoa portadora da
terrível disfunção? Não haveria, aí também, oportunidade para
muito nepotismo, muita proteção por fora? E após novas ponderações
verificou-se que bastaria um funcionário honesto atrás de um
guichê. O Homem Apaixonado chegaria e o funcionário examinaria
rapidamente o fundo do seu olho para diagnosticar o chamado olho de
peixe, ou seja, meio vidrado. Feito isto, tomar-lhe-ia o pulso ao
mesmo tempo que perguntasse: “O senhor se considera realmente
apaixonado?” Ao que, o paciente - eu, suponhamos - responderia mais
ou menos assim:
-
Ah, o senhor quer saber que dia é? São quatro e meia e a primavera
está linda. Ela se chama Nelita...
E
cairia para trás, duro e babando.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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