sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O credo capitalista

O dinheiro tem sido essencial tanto para a construção de impérios quanto para promover a ciência. Mas o dinheiro é o objetivo final desses empreendimentos, ou apenas uma necessidade perigosa?
Não é fácil entender o verdadeiro papel da economia na história moderna. Volumes inteiros foram escritos sobre como o dinheiro fundou Estados e os arruinou, abriu novos horizontes e escravizou milhões, impulsionou a indústria e levou centenas de espécies à extinção. Mas, para entender a história econômica moderna, é preciso entender uma só palavra. Essa palavra é: crescimento. Para melhor ou para pior, na saúde e na doença, a economia moderna cresce como um adolescente inundado por hormônios. Devora tudo que encontra pela frente, mas cresce mais depressa do que podemos registrar.
Durante a maior parte da história, a economia permaneceu mais ou menos do mesmo tamanho. Sim, a produção global aumentou, mas isso se deveu principalmente à expansão demográfica e ao povoamento de novas terras. A produção per capita continuou estática. Mas tudo isso mudou na era moderna. Em 1500, a produção global de bens e serviços era equivalente a cerca de 250 bilhões de dólares; hoje, gira em torno de 60 trilhões. O que é mais importante, em 1500 a produção per capita anual era, em média, 550 dólares, enquanto hoje todo homem, mulher e criança produz, em média, 8,8 mil dólares por ano. 1 O que explica esse crescimento estupendo?
A economia é um assunto notoriamente complicado. Para facilitar as coisas, imaginemos um exemplo simples.
Samuel Ganância, um financista perspicaz, funda um banco em São Paulo.
A. A. Arguto, um empreiteiro em ascensão em São Paulo, termina sua primeira obra, recebendo pagamento em dinheiro na casa de 1 milhão de dólares. Ele deposita essa soma no banco do sr. Ganância. O banco agora tem 1 milhão de dólares em capital.
Enquanto isso, Dulce Massa, uma chef experiente, mas sem recursos, acredita ter encontrado uma oportunidade de negócio: não há nenhuma padaria realmente boa em seu bairro. Mas ela não tem dinheiro suficiente para comprar toda a infraestrutura necessária, com fornos industriais, pias, facas e utensílios. Ela vai ao banco, apresenta seu plano de negócio a Ganância e o convence de que é um investimento vantajoso. Ele lhe concede um empréstimo de 1 milhão de dólares, creditando essa soma na conta dela no banco.
Dulce Massa agora contrata Arguto, o empreiteiro, para construir e equipar a padaria. O preço dele é 1 milhão de dólares.
Quando ela o paga, com um cheque de sua conta, Arguto o deposita na conta dele no banco de Ganância.
Então, quanto dinheiro Arguto tem em sua conta bancária? Exato, 2 milhões de dólares.
Quanto dinheiro, em espécie, há de fato no cofre do banco? Você acertou: 1 milhão de dólares.
Não termina aqui. Como empreiteiros costumam fazer, dois meses depois de iniciada a obra, Arguto informa a Dulce Massa que, devido a problemas e despesas imprevistos, o custo para construir a padaria na verdade será 2 milhões de dólares. A sra. Dulce Massa não fica satisfeita, mas não pode parar a obra na metade. Então, ela faz outra visita ao banco, convence o Sr. Ganância a lhe dar um empréstimo adicional, e ele deposita mais 1 milhão de dólares na conta dela. Ela transfere o dinheiro para a conta do empreiteiro.
Quanto dinheiro Arguto tem em sua conta agora? Ele tem 3 milhões de dólares.
Mas quanto dinheiro existe de verdade no banco? Continua havendo apenas 1 milhão de dólares. Na verdade, o mesmo milhão de dólares que esteve no banco esse tempo todo.
A legislação atual que regulamenta os bancos nos Estados Unidos permite que o banco repita esse exercício sete vezes mais. O empreiteiro acabaria por ter 10 milhões de dólares em sua conta, embora o banco continuasse tendo não mais de 1 milhão de dólares em seus cofres. Os bancos são autorizados a emprestar dez dólares para cada dólar que realmente têm, o que significa que 90% de todo o dinheiro em nossas contas bancárias não é coberto por moedas e notas reais. 2 Se todos os correntistas do Barclays decidirem sacar seu dinheiro de repente, o Barclays quebrará imediatamente (a não ser que o governo intervenha para salvá-lo). O mesmo é válido para o Lloyds, o Deutsche Bank, o Citibank e todos os outros bancos do mundo.
Parece um esquema Ponzi gigante, não? Mas, se isso é uma fraude, então toda a economia moderna é uma fraude. A verdade é que não se trata de uma fraude, e sim de um tributo às capacidades incríveis da imaginação humana. O que permite que os bancos – e toda a economia – sobrevivam e floresçam é nossa confiança no futuro. Essa confiança é o única garantia para a maior parte do dinheiro do mundo.
No exemplo da padaria, a discrepância entre o extrato bancário do empreiteiro e a quantidade de dinheiro que realmente existe no banco é a padaria da sra. Dulce Massa. O sr. Ganância colocou o dinheiro do banco nesse ativo, confiando que um dia será lucrativo. A padaria ainda não assou nem um pão, mas Dulce Massa e Ganância preveem que, dali a um ano, estará vendendo milhares de pães, bolos e biscoitos por dia, com uma bela margem de lucro. A sra. Dulce Massa, então, será capaz de pagar o empréstimo, com juros. Se, nesse momento, o sr. Arguto decidir sacar suas economias, Ganancia será capaz de fornecer esse dinheiro. Toda a iniciativa é, portanto, baseada na confiança em um futuro imaginário – a confiança de que a empreendedora e o banqueiro terão a padaria dos seus sonhos, e a confiança do empreiteiro na futura solvência do banco.
Nós já vimos que o dinheiro é algo impressionante, porque pode representar uma série de objetos diferentes e converter qualquer coisa em praticamente qualquer outra coisa. No entanto, antes da era moderna essa capacidade era limitada. Na maioria dos casos, o dinheiro só podia representar e converter coisas que já existiam no presente. Isso impunha uma grave limitação ao crescimento, já que tornava muito difícil financiar novos empreendimentos.
Considere nossa padaria mais uma vez. Dulce Massa teria conseguido construí-la se o dinheiro só pudesse representar objetos tangíveis? Não. No presente, ela tem uma porção de sonhos, mas nenhum recurso tangível. A única forma de construir sua padaria seria encontrar um empreiteiro disposto a trabalhar hoje e receber o pagamento daqui a alguns anos, se e quando a padaria começasse a dar dinheiro. Infelizmente, tais empreiteiros são raros. Então nossa empreendedora está em um dilema. Sem uma padaria, ela não pode assar pães e bolos. Sem pães e bolos, ela não pode ganhar dinheiro. Sem dinheiro, ela não pode contratar um empreiteiro. Sem empreiteiro, ela não tem padaria.
A humanidade esteve presa nessa encruzilhada por milhares de anos. Em consequência, as economias permaneceram congeladas. A maneira de sair da armadilha só foi descoberta na era moderna, com o surgimento de um novo sistema baseado na confiança no futuro. Nele, as pessoas concordaram em representar bens imaginários – bens que não existem no presente – com um tipo especial de dinheiro chamado “crédito”. O crédito nos permite construir o presente à custa do futuro. Baseia-se no pressuposto de que nossos recursos futuros serão muito mais abundantes do que nossos recursos presentes. Se pudermos construir coisas no presente usando receitas futuras, abre-se diante de nós uma série de novas oportunidades maravilhosas.
Se o crédito é algo tão maravilhoso, por que ninguém pensou nisso antes? É claro que pensaram. Acordos de crédito de um tipo ou de outro existiram em todas as culturas humanas conhecidas, remontando pelo menos à antiga Suméria. O problema nas eras anteriores não é que ninguém teve a ideia ou soube como usá-la. É que as pessoas raramente queriam conceder muito crédito porque não confiavam que o futuro seria melhor do que o presente. Geralmente acreditavam que os tempos passados eram melhores do que sua própria época e que o futuro seria pior ou, quando muito, igual. Dito em termos econômicos, acreditavam que a quantidade total de riqueza era limitada, se é que não estava em declínio. Portanto, as pessoas consideravam uma má aposta presumir que elas pessoalmente, ou seu reino, ou o mundo inteiro estariam produzindo mais riqueza dali a dez anos. Os negócios pareciam um jogo de soma zero. É claro, os lucros de uma padaria em particular podiam aumentar, mas só à custa da padaria em frente. Veneza podia florescer, mas só empobrecendo Gênova. O rei da Inglaterra podia enriquecer, mas só roubando o rei da França. O bolo podia ser repartido de muitas formas diferentes, mas nunca ficava maior.
É por isso que muitas culturas concluíram que ganhar montes de dinheiro era pecaminoso. Como disse Jesus, “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:24). Se o bolo é sempre do mesmo tamanho, e eu tenho um pedaço grande dele, devo ter pegado a fatia de alguém. Os ricos eram obrigados a fazer penitência por suas más ações, destinando parte de sua riqueza excedente à caridade.
Se o bolo global permanecia do mesmo tamanho, não havia margem para crédito. O crédito é a diferença entre o bolo de hoje e o bolo de amanhã. Se o bolo continua igual, por que conceder crédito? Seria um risco inaceitável, a não ser que se acreditasse que o padeiro ou o rei pedindo dinheiro pudesse ser capaz de roubar uma fatia da concorrência. Por isso, era difícil obter um empréstimo no mundo pré-moderno, e quando um era concedido, geralmente era pequeno, de curto prazo e sujeito a juros altos. Desse modo, empreendedores iniciantes tinham dificuldade para abrir novas padarias, e grandes reis que quisessem construir palácios ou travar guerras não tinham outra alternativa senão levantar os fundos necessários por meio de tarifas e impostos altos. Isso não era um problema para os reis (conquanto seus súditos continuassem obedientes), mas uma copeira que tivesse uma grande ideia para uma padaria e quisesse subir na vida geralmente só podia sonhar com riqueza enquanto esfregava o piso da cozinha da realeza.
Era uma situação desvantajosa para todos. Como o crédito era limitado, as pessoas tinham dificuldade para financiar novos negócios. Como havia poucos novos negócios, a economia não crescia. Como a economia não crescia, as pessoas presumiam que ela jamais cresceria, e os que tinham capital eram cautelosos com a concessão de crédito. A expectativa da estagnação se retroalimentava.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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