I
/ BRANCA
Eu
conheci Branca no colégio público, tinha por aí meus sete anos.
Era a Escola Afrânio Peixoto e ficava a meio caminho da rua da
Matriz. Nesse tempo a gente se deslumbrava diante de uma borracha
Faber, das grandes, boas não só para apagar como para morder. Não
havia ainda cadernos verde-amarelos, com hinos transcritos nas costas
e se usavam pequenas ardósias que os alunos chamavam "a minha
pedra", para a qual havia também um lápis, “o lápis de
pedra”, que riscava a superfície negra com um rinchado de arrepiar
uma tartaruga.
Branca
foi a minha primeira namorada. Morava na casa contígua à minha, na
rua Voluntários da Pátria, lar de meus avós, para onde eu vinha da
Ilha do Governador, onde viviam meus pais, durante o ano letivo. A
menina usava o vestido bem acima dos joelhos e tinha sempre um laço
de cor no chinó.
No
princípio não dei muita atenção a ela, por causa de duas meninas
da minha classe que, embora não namorasse, me perturbavam por
demais. Uma me dera um beijo um dia, em plena hora da comunhão, na
matriz de São João Batista, onde oficiava o então padre Rosalvo da
Costa Rego. A outra fazia composições lindas sobre o pôr-do-sol,
que tocavam fundo o meu literatismo despontante.
Comecei
a amá-la porque um dia, no portão de sua casa, minha mão encostou
de leve em sua perna. Nunca mais esqueci essa sensação. Foi a coisa
mais fresca, dúctil, lisa, benfazeja que jamais toquei em minha
vida. Parecia uma imensa borracha Faber. E namorei-a apesar do seu
sobrenome, que me envergonhava um pouco e prestava-se a uma porção
de piadas por parte dos meninos (ela chamava-se Varanda), e de sua
cor, pois Branca era quase pretinha. Branca me dava cola em história
do Brasil.
Nunca
mais pus a mão em sua perna.
II
/ NEGRA
Negra
era linda. Andava como uma jovem pantera, o passo elástico
desenvolvendo esferas no espaço em torno. Eu, sinceramente, não me
achava merecedor dela e, de certo modo, até hoje me pergunto por que
Negra me escolheu entre tantos outros garotos. Ela era um pouquinho
mais alta que eu, e excedia em majestade. Qualquer coisa assim como
se agora, por exemplo, Ursula Andress viesse ao Brasil e cismasse
comigo.
Eu
tinha um misto de vergonha e orgulho de sair com ela na rua. Sim,
vergonha, porque os outros meninos a olhavam com cobiça e alguns
dirigiam-lhe gracejos. Ficava cego de raiva mas não fazia nada
porque isso era a todo instante. Até que um dia Negra parou (foi ali
na Sorocaba), e apontou para o grupo - uns três guris - que tinha
mexido com ela, em termos mais pesados.
-
Vai e dá neles!
E
eu parti com tal raça que os meninos, depois de derrubado o
primeiro, fugiram e ficaram nos vaiando de longe. Negra deu-me um
rápido olhar de quem diz: muito bem! - e dando-me a mão partiu
comigo: eu com náusea de estômago, como até hoje tenho depois que
entro em cólera
Negra
sabia de mais coisas que o João. Levava-me para sua casa e bastava a
mãe ou o pai saírem da sala, e a menina dava-me violentas
“enxovas”. Gostava de beijar como Greta Garbo, que era a rainha
cinematográfica da época, ou seja, dando-me uma gravata e colocando
meu rosto sob o dela. Aquilo me humilhava um pouco, mas também não
vamos exagerar. Eu era vidrado por Negra e para mim tudo o que ela
fazia estava perfeito.
Só
sei que, como cheguei, me fui. Um verão ela subiu para Petrópolis
onde eu ia visitá-la às vezes, numa bela casa à margem do
Piabanha. Certo dia cheguei lá e ela veio atender-me no portão:
-
Eu queria dizer a você que já tenho outro namorado.
Voltei,
no antigo trenzinho de cremalheira, lavado em lágrimas. Ah! Negra,
por que você foi fazer uma coisa dessas comigo e me desprover assim
do tato de seus cabelos louros, da sua boca gulosa e de sua pele mais
branca do que a lua?
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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