Coyoacán
é um dos bairros mais vibrantes da Cidade do México. Há meio
século, era apenas um pueblo, como tantos outros nos
arredores da capital: Mixcoac, Tacubaya, San Ángel e Tlalpan, quase
todos com seus conventos, igrejas, praças, ruínas pré-hispânicas.
Octavio Paz assinalou que “incontáveis edifícios históricos em
todo o México foram demolidos ou desonrados pela barbárie, incúria
e avidez do lucro”. Apesar disso, ainda há fortes vestígios do
passado em Coyoacán: igrejas coloniais esplêndidas, casas
solariegas, ruas e becos arborizados e pequenas praças que
são lugares de calmaria e prazer visual numa das maiores cidades do
mundo, e talvez a mais fascinante desta América.
Andava
por Coyoacán — onde por vários anos morou o poeta Horácio Costa
—, quando vi uma placa singela: Museo Trótski. Ao contrário do
museu Frida Kahlo — a mais festejada artista mexicana do século
passado —, não havia fila para comprar ingressos. Por curiosidade
histórica, entrei no museu quase vazio e comecei a observar
fotografias da época em que Trótski viveu em Coyoacán.
Perseguido
por Stálin, Leon Trótski chegou ao México em janeiro de 1937.
Diego Rivera e Frida Kahlo lhe deram abrigo na “casa azul” da rua
Londres, no coração de Coyoacán. Morou nessa casa até maio de
1939, quando se mudou para o número 19 da rua Viena. Dizem que teve
um caso amoroso com Frida, que não hesitou em pintar o rosto de
Stálin num de seus quadros. Nem sempre a ideologia destrói amizades
e namoros. O certo é que em 20 de agosto de 1940 foi golpeado
mortalmente por Ramón Mercader, cujos codinomes eram Jacques Mornard
e Frank Jacson.
Há
filmes e romances sobre traições, intrigas, calúnias e
perseguições que envolveram o covarde assassinato de Trótski. Às
vezes, grandes assassinatos políticos passam pela sedução. Durante
uma reunião política em Paris, Ramón seduziu a norte-americana
Sylvia Agelott, que viria a ser a secretária de Trótski na Cidade
do México. Depois Ramón se aproximou dos amigos, da família do
exilado e dos guardas que protegiam a casa da rua Viena.
Enquanto
visitava essa casa, cujo interior é modestíssimo, pensava nas
razões que levaram Trótski a confiar em seu assassino. O
ex-comandante do Exército Vermelho podia ser tudo, menos ingênuo.
Certamente foi um dos mais hábeis e corajosos líderes comunistas, e
não seria inexato dizer que foi cruel no comando do Exército
Vermelho. No exílio imposto por Stálin, Trótski refugiou-se na
Turquia, na França e na Noruega antes de se exilar na capital
mexicana. Na noite de 24 de maio de 1940, um grupo de stalinistas
chefiado pelo artista David Siqueiros invadiu a casa da rua Viena e
metralhou o quarto onde Leon e Natasha dormiam. Ambos escaparam desse
atentado, planejado por Ramón.
Por
precaução, a metade da janela do quarto do casal foi tapada com
alvenaria; a porta, agora blindada, estreitou-se. De uma torre
erguida no quintal, vigias controlavam o movimento nos arredores da
casa e a entrada de visitantes. A água escura do rio Churubusco
ainda corria a poucos metros da rua Viena. No pacato pueblo de
Coyoacán a vida do exilado tornou-se uma prisão domiciliar.
O
guia da visita era um jovem mexicano simpático e falastrão.
Alternava o nome de Stálin com “o criminoso”; falava com a
segurança de quem havia lido os três volumes da excelente biografia
de Trótski, escrita por Isaac Deutscher.
Visitamos
a cozinha, a sala, a biblioteca e o jardim, onde o casal Trótski
cuidava de uma horta e criava coelhos. Também no jardim o
revolucionário banido foi enterrado. Vi a torre dos vigias coberta
de musgo e imaginei que na tarde do dia 20 de agosto de 1940 Ramón
Mercader, parado na rua Viena, acenara para os guardas. Dessa vez,
Ramón não visitaria sua namorada, e sim Trótski. Queria mostrar ao
exilado um artigo político. Fluente em várias línguas e pretenso
estudioso de política internacional numa época em que a Espanha e
quase toda a Europa estavam em chamas, Ramón persuadira sua vítima
a ler ou revisar um ensaio.
No
final da tarde nublada entramos no escritório, onde Trótski
começara a ler o texto de Ramón. Nesse momento o guia, emocionado,
apontou o exato lugar onde o assassino erguera a pequena picareta de
alpinista e golpeara por trás a cabeça da vítima. Eram seis horas
em ponto. O horário da visita coincidia com a do ato do assassino.
Da janela do escritório avistava-se no jardim a lápide de cimento,
cercada de cactos e arbustos. Escurecia.
Eu
disse ao guia que Trótski, ferido mortalmente, apontara para o algoz
e balbuciara em espanhol: “Não o matem… Ele deve falar…”.
O
guia, ansioso, imediatamente me corrigiu. Trótski disse: “Não o
matem… Esse homem tem uma história para contar”.
Essa
última versão me parece mais plausível, porque a história — sua
trama política com suas traições — e a voz estão implicadas na
mesma frase agônica: uma história para contar.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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