quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Fantasmas de Trótski em Coyoacán

Coyoacán é um dos bairros mais vibrantes da Cidade do México. Há meio século, era apenas um pueblo, como tantos outros nos arredores da capital: Mixcoac, Tacubaya, San Ángel e Tlalpan, quase todos com seus conventos, igrejas, praças, ruínas pré-hispânicas. Octavio Paz assinalou que “incontáveis edifícios históricos em todo o México foram demolidos ou desonrados pela barbárie, incúria e avidez do lucro”. Apesar disso, ainda há fortes vestígios do passado em Coyoacán: igrejas coloniais esplêndidas, casas solariegas, ruas e becos arborizados e pequenas praças que são lugares de calmaria e prazer visual numa das maiores cidades do mundo, e talvez a mais fascinante desta América.
Andava por Coyoacán — onde por vários anos morou o poeta Horácio Costa —, quando vi uma placa singela: Museo Trótski. Ao contrário do museu Frida Kahlo — a mais festejada artista mexicana do século passado —, não havia fila para comprar ingressos. Por curiosidade histórica, entrei no museu quase vazio e comecei a observar fotografias da época em que Trótski viveu em Coyoacán.
Perseguido por Stálin, Leon Trótski chegou ao México em janeiro de 1937. Diego Rivera e Frida Kahlo lhe deram abrigo na “casa azul” da rua Londres, no coração de Coyoacán. Morou nessa casa até maio de 1939, quando se mudou para o número 19 da rua Viena. Dizem que teve um caso amoroso com Frida, que não hesitou em pintar o rosto de Stálin num de seus quadros. Nem sempre a ideologia destrói amizades e namoros. O certo é que em 20 de agosto de 1940 foi golpeado mortalmente por Ramón Mercader, cujos codinomes eram Jacques Mornard e Frank Jacson.
Há filmes e romances sobre traições, intrigas, calúnias e perseguições que envolveram o covarde assassinato de Trótski. Às vezes, grandes assassinatos políticos passam pela sedução. Durante uma reunião política em Paris, Ramón seduziu a norte-americana Sylvia Agelott, que viria a ser a secretária de Trótski na Cidade do México. Depois Ramón se aproximou dos amigos, da família do exilado e dos guardas que protegiam a casa da rua Viena.
Enquanto visitava essa casa, cujo interior é modestíssimo, pensava nas razões que levaram Trótski a confiar em seu assassino. O ex-comandante do Exército Vermelho podia ser tudo, menos ingênuo. Certamente foi um dos mais hábeis e corajosos líderes comunistas, e não seria inexato dizer que foi cruel no comando do Exército Vermelho. No exílio imposto por Stálin, Trótski refugiou-se na Turquia, na França e na Noruega antes de se exilar na capital mexicana. Na noite de 24 de maio de 1940, um grupo de stalinistas chefiado pelo artista David Siqueiros invadiu a casa da rua Viena e metralhou o quarto onde Leon e Natasha dormiam. Ambos escaparam desse atentado, planejado por Ramón.
Por precaução, a metade da janela do quarto do casal foi tapada com alvenaria; a porta, agora blindada, estreitou-se. De uma torre erguida no quintal, vigias controlavam o movimento nos arredores da casa e a entrada de visitantes. A água escura do rio Churubusco ainda corria a poucos metros da rua Viena. No pacato pueblo de Coyoacán a vida do exilado tornou-se uma prisão domiciliar.
O guia da visita era um jovem mexicano simpático e falastrão. Alternava o nome de Stálin com “o criminoso”; falava com a segurança de quem havia lido os três volumes da excelente biografia de Trótski, escrita por Isaac Deutscher.
Visitamos a cozinha, a sala, a biblioteca e o jardim, onde o casal Trótski cuidava de uma horta e criava coelhos. Também no jardim o revolucionário banido foi enterrado. Vi a torre dos vigias coberta de musgo e imaginei que na tarde do dia 20 de agosto de 1940 Ramón Mercader, parado na rua Viena, acenara para os guardas. Dessa vez, Ramón não visitaria sua namorada, e sim Trótski. Queria mostrar ao exilado um artigo político. Fluente em várias línguas e pretenso estudioso de política internacional numa época em que a Espanha e quase toda a Europa estavam em chamas, Ramón persuadira sua vítima a ler ou revisar um ensaio.
No final da tarde nublada entramos no escritório, onde Trótski começara a ler o texto de Ramón. Nesse momento o guia, emocionado, apontou o exato lugar onde o assassino erguera a pequena picareta de alpinista e golpeara por trás a cabeça da vítima. Eram seis horas em ponto. O horário da visita coincidia com a do ato do assassino. Da janela do escritório avistava-se no jardim a lápide de cimento, cercada de cactos e arbustos. Escurecia.
Eu disse ao guia que Trótski, ferido mortalmente, apontara para o algoz e balbuciara em espanhol: “Não o matem… Ele deve falar…”.
O guia, ansioso, imediatamente me corrigiu. Trótski disse: “Não o matem… Esse homem tem uma história para contar”.
Essa última versão me parece mais plausível, porque a história — sua trama política com suas traições — e a voz estão implicadas na mesma frase agônica: uma história para contar.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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