Mwadia
seguiu pelo corredor, guiada pela penumbra que escoava pelas janelas.
A luz do dia não tardaria a encorpar. Empurrando o saco de viagem
pelo chão, Mwadia avançava a custo. De súbito, embateu num vulto
escuro.
— Mãe?
Disforme
e envelhecida, Dona Constança estava irreconhecível. Desde que a
sua última filha se retirara, ela duplicara de volume. É sabido: a
tristeza engorda mais que o caril de mandioca. Constança se
arrastava, como se um pó lhe fosse tombando dos pés e ela, em cada
passo, perdesse a sua própria substância.
— Então,
mãe, o que tem feito?
— O
que eu faço? Nestes dias, eu só adoeço.
As
doenças são a sua única companhia agora que as suas filhas se
foram e o marido Jesustino Rodrigues transitara de companheiro para
companhia.
— Por
que é que a mãe nunca me visitou?
— Não
fui eu que saí de casa.
Mwadia
não respondeu. Durante um tempo fixou o rosto da mãe, procurando
vestígios da sua antiga formosura. Dona Constança evitou cruzar o
olhar. A filha decidiu mudar de assunto.
— A
Tia Luzmina está acordada?
— Não.
— Posso
bater na porta dela?
— Não,
não faça isso.
— Mas
ela iria gostar de saber que cheguei, vou acordá-la.
— Espera
filha, é que Luzmina... sua Tia vai demorar a acordar, no sono que
ela está...
A
mãe anunciava o irreparável? A voz de Mwadia lhe escapou por uma
fresta no peito:
— A
Tia?
— Sim,
a Tia ausentou-se.
No
lar dos Rodrigues não se pronunciava o verbo morrer.
Dizia-se: ausentar. Mwadia sentiu que desabava no abismo do
soluço. A mãe, autoritária, advertiu:
— Nesta
casa não se chora!
Sempre
fora essa a interdição: chorar era um malfazejo hábito que se
espalhara como doença. Eles, os Rodrigues, não choravam. Podiam
beber sem medida, rir alto, descomportar-se com pompa e sem
circunstância. Mas chorar não. O pranto convoca os espíritos da
desgraça.
***
A
fotografia estendida na mão de Dona Constança era um modo de deitar
leveza no momento.
— Veja,
é a última foto da sua Tia.
Luzmina
posava, magra, os olhos acrescidos no rosto escaveirado. Mwadia
revirou a foto para olhar a data. Era recente e tinha sido enviada da
capital.
— Ela,
aí, já estava muito doente.
A
mãe não disse mais, apenas soergueu o queixo a apontar o corredor.
Mwadia sabia do seu dever. Pegou na imagem e conduziu-a à chamada
“parede dos ausentes”. No corredor exibiam-se as fotos dos
familiares defuntos. No chão, um balde recolhia as lágrimas dos
falecidos.
No
alto da parede dos ausentes figurava a velha agogodela, uma
espingarda de carregar pela boca que tinha sido propriedade do bisavô
Rodrigues. Por baixo da arma, a moldura já estava preparada. Faltava
só ajustar a fotografia e Mwadia, quando completou a tarefa,
espreitou o seu próprio reflexo no vidro.
— Agora,
venha, disse a mãe. Venha que eu vou lavá-la.
— Lavar-me?
— Quero
que seja você, sozinha com seu corpo, a entrar nesta casa.
***
As
mãos da mãe fizeram escorrer a água pelo corpo nu de Mwadia. A
moça sorriu da situação: durante anos fora ela que dera banho.
Mais propriamente, dera banho a Zero Madzero. Agora, ela era a
lavada. Fechou os olhos, embriagada, como se a alma estivesse sendo
dissolvida.
— Fosse
no meu tempo não era com estas águas que você era banhada.
— Eu
sei, mãe.
— Não
sabe, não. Você era banhada com sangue de galinha. Para a lavar do
sangue desse homem que se passeou pelo seu corpo.
— Mas
isso não é só água, mãe. O que é que deitou nesse balde?
Nada,
filha, apenas uns cheiros.
A
vida são golpes, costuras e pontes. Afinal, quando Mwadia dava banho
a Zero ela apenas estava costurando os tempos, dando seguimento a uma
tradição antiga.
— Diga-me
uma coisa, mãe, com sinceridade: a senhora acredita nisto?
— Nisto,
o quê?
— Nas
lavagens para afastar os maus espíritos...
— Eu
tenho saudade daquele tempo, é isso que eu sei...
A
mãe suspendeu o gesto e apontou para a cozinha exterior. E confessou
que, às vezes, ela ia para ali sentar-se só para reviver os tempos
em que a família se arredondava, no grávido círculo da felicidade.
— Vou
para ali só para sentir saudade.
— E
gosta?
— A
saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores.
Deixou-se
levar para o quarto e a mãe esfregou-a numa toalha velha. Tudo
parecia perfeito, Mwadia era de novo menina e os beirais se enchiam
de asas e cantos.
***
— Como
aconteceu, mãe? Como é que a Tia se ausentou?
— Nem
quero falar disso, Mwadia, respondeu Constança. É melhor você só
lembrar aquela Luzmina que você conheceu quando era criança...
Nos
últimos tempos, ela se revelou outra, contrariando o seu imaculado
comportamento. Tudo começou quando uma noite, à mesa de jantar,
perante visitas cerimoniosas, ela fingiu limpar os lábios e, ainda
de guardanapo na mão, disse:
— Não
é para me gabar, mas tenho muito jeito para puta!
Enfrentando
angelicamente os olhares reprovadores, Luzmina argumentou:
— Falei
torto? Está na Bíblia, tudo está na Bíblia.
— Luzmina,
por favor...
— Luzmina,
não. Sou Santa Luzmina, mãe dos pecadores, padroeira das
prostitutas.
Nos
dias seguintes, a família fez todo o possível para recuperar
Luzmina para o seu privado juízo. Contudo, era tarde: a moça se
agravava irreversivelmente. E já reclamava que Eva era indiana, da
casta brâmane, e que ela própria, Luzmina Rodrigues, era Nossa
Senhora. Estava ali, na recatada Vila Longe, à espera do Espírito
Santo que deveria certamente ser um goês de casta elevada. Como o
tempo passasse e o seu bem-amado tardasse, ela iria tomar o caminho
da cidade e apressaria o ansiado encontro.
— Mana,
não diga isso. Deus castiga...
— Já
me castigou. E você sabe muito bem como, meu irmão.
Jesustino
recuou, cabisbaixo, envergonhado com o comportamento de sua irmã
mais velha. A quem não chegava o pudor era a Luzmina que prosseguiu
com as inesperadas heresias:
— Deus,
Deus, Deus... Pois se eu fosse Deus, Jesus Cristo não tinha morrido.
Não
havia tempo a perder: pediram ao padre que viesse da cidade para a
benzer, conduziram-na ao curandeiro Lázaro Vivo que deitou as hakata
para decifrar os presságios. Cortaram-lhe o sal na dieta para que o
sangue corresse menos espesso, untaram-na de barro retirado da margem
do rio e colocaram-lhe uma vara de muveva por baixo do travesseiro.
Tudo isso foi em vão. A goesa teimava em seus delírios. E repetia,
em queixosa ladainha: s ubi à cruz para descrucificar Cristo,
dediquei toda a vida à devoção e Deus o que me deu em troca? Pois
agora, sigo os conselhos do Diabo. A partir desse momento, Luzmina
passou a dormir no sofá da sala, com uma mala de roupa a seu lado.
Quando lhe pediram explicação, ela respondeu:
— Estou
à espera de ser levada, daqui para muito distante.
Mas
nunca ninguém passou, ninguém visitava tão distante paradeiro. Foi
ela que partiu, de madrugada, aproveitando boleia da carrinha do Tio
Casuarino. Luzmina foi para a cidade, perdeu-se entre brumas e fumos.
Jesustino ainda se deslocou para a procurar na cidade. Nem sinal
dela. O alfaiate regressou, inconformado, culpando Casuarino por não
ter impedido aquela intempestiva e irresponsável viagem de sua irmã.
Ele era o único irmão, cabia-lhe tomar conta dela, tão só,
outrora tão crente em Deus, agora tão tresmalhada da razão. Por
diversas vezes, Jesustino ainda foi à decadente estação dos
correios e inquiriu Matambira, o último funcionário sobrevivente,
se havia carta da cidade.
***
Não
veio carta, nem antes, nem depois. Foi Luzmina Rodrigues quem trouxe
pessoalmente a notícia da sua própria morte. O corpo dela chegou
numa carrinha de um anónimo mineiro. O homem estacionou junto à
entrada da Vila, anichou o veículo à sombra de um portentoso
embondeiro. Chamaram Jesustino para tomar conta da desocorrência. Só
ele ficou sabendo do finar de sua mana Luzmina. O magaíça depôs o
caixão na areia, enrolou o dinheiro que o goês lhe passou e partiu
numa nuvem de poeira.
Era
noite quando Jesustino entrou em casa e se aproximou de Dona
Constança. Havia uma cansada lamparina que fantasmeava o quarto. A
esposa adivinhou-lhe o amargo no rosto:
— Tem
uma notícia triste, marido?
— Muito
triste.
— Então,
já sabe como me vai contar.
Ela
deitou-se, despiu-se e esperou que o marido se enroscasse a seu lado.
Depois beijou-o e abraçou-o com força. Enquanto faziam amor ele lhe
foi contando a novidade da morte de Luzmina, desfiando a tristeza que
a mulher ia sufocando a golpes de ternura, corpo diluindo-se em outro
corpo.
No
fim do namoro, lágrimas já secas, Constança ainda espreitou o
rosto do marido. Queria certificar-se de que não era uma mentira que
ele inventara só para fazer amor. Mas o cansaço de Jesustino era
genuíno. Ninguém pode estar assim fatigado se não estiver sofrendo
de verdadeira melancolia.
Luzmina,
de fato, falecera. Todavia, em Vila Longe a morte não é exatamente
um fato. A tia falecera como é devido naquele lugar: sem nunca
chegar a morrer. Quer dizer: a sua alma ficara acesa, brilhando entre
sombras, suspiros e silêncios.
No
dia seguinte, dilacerado pela dor de perder a sua única irmã,
Jesustino tentou o suicídio. A receita era fatal: o venenoso
tubérculo da gloriosa, essa florinha vermelha que espontaneja na
areia das dunas. O goês esteve sete dias de coma, caíram-lhe os
cabelos, dissolveram-se-lhe as unhas, azularam-se-lhe as babas. No
oitavo dia, soergueu-se na cama, olhos piscos, mastigando palavras:
— Nem
morrer sei.
— Você
me matou foi a mim, meu caro Jesustino Rodrigues, murmurou Constança.
O tom acusatório era tão sincero que o marido se interrogou sobre
que segredos saberia a sua companheira.
***
De
tudo isso estava distante Mwadia. Tudo aquilo ocorrera durante a sua
longa ausência em Antigamente. A moça até se assustou quando a mão
gorda de Dona Constança recobriu os seus dedos magros para a
reconduzir ao presente.
— Essa
é a última fotografia de sua Tia...
Mão
na mão, as duas mulheres percorreram as linhas do rosto da falecida
Luzmina, como se lhe corrigissem o destino. Alinhavam a moldura na
parede como quem ajeita flores sobre uma campa.
Que
idade ela tinha nesta foto?
— Tinha,
não. Tem.
— Não
entendo.
— Essa
foto ela tirou-a com trinta e cinco anos. Mas a sua Tia continua a
envelhecer na imagem.
— Ora,
mãe...
— A
última vez que peguei nessa foto ela nem tinha estes cabelos
brancos...
Regressaram
à mesa da cozinha para terminarem o chá. A mãe demorou a ajeitar o
corpo na cadeira. Depois, puxou de uma cesta e dela retirou peças de
vestuário. E fez aquilo que sempre fazia para ganhar sono: dobrou as
peúgas coloridas de suas meninas. Os dedos gordos convocavam, uma
por uma, as filhas que há muito saíram de casa. A voz já se
inundava de sono quando Constança insistiu:
— Lembra-se
do tempo em que eu passava tardes e tardes costurando?
— Lembro-me,
mãe. Eram tantas filhas, tantas roupas!
— A
maior parte das vezes, eu só fingia que costurava.
— Fingia?
Fingia para quê?
Os
homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes
nervosas suspeitas.
— Enquanto
ia costurando, o seu pai não imaginava que eu estava pensando. Minha
cabeça viajava por todo lado.
Nesses
escassos momentos, Constança era mulher sem ter que pedir licença,
existindo sem ter que pedir perdão.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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