sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A travessia do tempo (trecho)

Mwadia seguiu pelo corredor, guiada pela penumbra que escoava pelas janelas. A luz do dia não tardaria a encorpar. Empurrando o saco de viagem pelo chão, Mwadia avançava a custo. De súbito, embateu num vulto escuro.
Mãe?
Disforme e envelhecida, Dona Constança estava irreconhecível. Desde que a sua última filha se retirara, ela duplicara de volume. É sabido: a tristeza engorda mais que o caril de mandioca. Constança se arrastava, como se um pó lhe fosse tombando dos pés e ela, em cada passo, perdesse a sua própria substância.
Então, mãe, o que tem feito?
O que eu faço? Nestes dias, eu só adoeço.
As doenças são a sua única companhia agora que as suas filhas se foram e o marido Jesustino Rodrigues transitara de companheiro para companhia.
Por que é que a mãe nunca me visitou?
Não fui eu que saí de casa.
Mwadia não respondeu. Durante um tempo fixou o rosto da mãe, procurando vestígios da sua antiga formosura. Dona Constança evitou cruzar o olhar. A filha decidiu mudar de assunto.
A Tia Luzmina está acordada?
Não.
Posso bater na porta dela?
Não, não faça isso.
Mas ela iria gostar de saber que cheguei, vou acordá-la.
Espera filha, é que Luzmina... sua Tia vai demorar a acordar, no sono que ela está...
A mãe anunciava o irreparável? A voz de Mwadia lhe escapou por uma fresta no peito:
A Tia?
Sim, a Tia ausentou-se.
No lar dos Rodrigues não se pronunciava o verbo morrer. Dizia-se: ausentar. Mwadia sentiu que desabava no abismo do soluço. A mãe, autoritária, advertiu:
Nesta casa não se chora!
Sempre fora essa a interdição: chorar era um malfazejo hábito que se espalhara como doença. Eles, os Rodrigues, não choravam. Podiam beber sem medida, rir alto, descomportar-se com pompa e sem circunstância. Mas chorar não. O pranto convoca os espíritos da desgraça.

***
A fotografia estendida na mão de Dona Constança era um modo de deitar leveza no momento.
Veja, é a última foto da sua Tia.
Luzmina posava, magra, os olhos acrescidos no rosto escaveirado. Mwadia revirou a foto para olhar a data. Era recente e tinha sido enviada da capital.
Ela, aí, já estava muito doente.
A mãe não disse mais, apenas soergueu o queixo a apontar o corredor. Mwadia sabia do seu dever. Pegou na imagem e conduziu-a à chamada “parede dos ausentes”. No corredor exibiam-se as fotos dos familiares defuntos. No chão, um balde recolhia as lágrimas dos falecidos.
No alto da parede dos ausentes figurava a velha agogodela, uma espingarda de carregar pela boca que tinha sido propriedade do bisavô Rodrigues. Por baixo da arma, a moldura já estava preparada. Faltava só ajustar a fotografia e Mwadia, quando completou a tarefa, espreitou o seu próprio reflexo no vidro.
Agora, venha, disse a mãe. Venha que eu vou lavá-la.
Lavar-me?
Quero que seja você, sozinha com seu corpo, a entrar nesta casa.

***
As mãos da mãe fizeram escorrer a água pelo corpo nu de Mwadia. A moça sorriu da situação: durante anos fora ela que dera banho. Mais propriamente, dera banho a Zero Madzero. Agora, ela era a lavada. Fechou os olhos, embriagada, como se a alma estivesse sendo dissolvida.
Fosse no meu tempo não era com estas águas que você era banhada.
Eu sei, mãe.
Não sabe, não. Você era banhada com sangue de galinha. Para a lavar do sangue desse homem que se passeou pelo seu corpo.
Mas isso não é só água, mãe. O que é que deitou nesse balde?
Nada, filha, apenas uns cheiros.
A vida são golpes, costuras e pontes. Afinal, quando Mwadia dava banho a Zero ela apenas estava costurando os tempos, dando seguimento a uma tradição antiga.
Diga-me uma coisa, mãe, com sinceridade: a senhora acredita nisto?
Nisto, o quê?
Nas lavagens para afastar os maus espíritos...
Eu tenho saudade daquele tempo, é isso que eu sei...
A mãe suspendeu o gesto e apontou para a cozinha exterior. E confessou que, às vezes, ela ia para ali sentar-se só para reviver os tempos em que a família se arredondava, no grávido círculo da felicidade.
Vou para ali só para sentir saudade.
E gosta?
A saudade é a única dor que me faz esquecer as outras dores.
Deixou-se levar para o quarto e a mãe esfregou-a numa toalha velha. Tudo parecia perfeito, Mwadia era de novo menina e os beirais se enchiam de asas e cantos.

***
Como aconteceu, mãe? Como é que a Tia se ausentou?
Nem quero falar disso, Mwadia, respondeu Constança. É melhor você só lembrar aquela Luzmina que você conheceu quando era criança...
Nos últimos tempos, ela se revelou outra, contrariando o seu imaculado comportamento. Tudo começou quando uma noite, à mesa de jantar, perante visitas cerimoniosas, ela fingiu limpar os lábios e, ainda de guardanapo na mão, disse:
Não é para me gabar, mas tenho muito jeito para puta!
Enfrentando angelicamente os olhares reprovadores, Luzmina argumentou:
Falei torto? Está na Bíblia, tudo está na Bíblia.
Luzmina, por favor...
Luzmina, não. Sou Santa Luzmina, mãe dos pecadores, padroeira das prostitutas.
Nos dias seguintes, a família fez todo o possível para recuperar Luzmina para o seu privado juízo. Contudo, era tarde: a moça se agravava irreversivelmente. E já reclamava que Eva era indiana, da casta brâmane, e que ela própria, Luzmina Rodrigues, era Nossa Senhora. Estava ali, na recatada Vila Longe, à espera do Espírito Santo que deveria certamente ser um goês de casta elevada. Como o tempo passasse e o seu bem-amado tardasse, ela iria tomar o caminho da cidade e apressaria o ansiado encontro.
Mana, não diga isso. Deus castiga...
Já me castigou. E você sabe muito bem como, meu irmão.
Jesustino recuou, cabisbaixo, envergonhado com o comportamento de sua irmã mais velha. A quem não chegava o pudor era a Luzmina que prosseguiu com as inesperadas heresias:
Deus, Deus, Deus... Pois se eu fosse Deus, Jesus Cristo não tinha morrido.
Não havia tempo a perder: pediram ao padre que viesse da cidade para a benzer, conduziram-na ao curandeiro Lázaro Vivo que deitou as hakata para decifrar os presságios. Cortaram-lhe o sal na dieta para que o sangue corresse menos espesso, untaram-na de barro retirado da margem do rio e colocaram-lhe uma vara de muveva por baixo do travesseiro. Tudo isso foi em vão. A goesa teimava em seus delírios. E repetia, em queixosa ladainha: s ubi à cruz para descrucificar Cristo, dediquei toda a vida à devoção e Deus o que me deu em troca? Pois agora, sigo os conselhos do Diabo. A partir desse momento, Luzmina passou a dormir no sofá da sala, com uma mala de roupa a seu lado. Quando lhe pediram explicação, ela respondeu:
Estou à espera de ser levada, daqui para muito distante.
Mas nunca ninguém passou, ninguém visitava tão distante paradeiro. Foi ela que partiu, de madrugada, aproveitando boleia da carrinha do Tio Casuarino. Luzmina foi para a cidade, perdeu-se entre brumas e fumos. Jesustino ainda se deslocou para a procurar na cidade. Nem sinal dela. O alfaiate regressou, inconformado, culpando Casuarino por não ter impedido aquela intempestiva e irresponsável viagem de sua irmã. Ele era o único irmão, cabia-lhe tomar conta dela, tão só, outrora tão crente em Deus, agora tão tresmalhada da razão. Por diversas vezes, Jesustino ainda foi à decadente estação dos correios e inquiriu Matambira, o último funcionário sobrevivente, se havia carta da cidade.

***
Não veio carta, nem antes, nem depois. Foi Luzmina Rodrigues quem trouxe pessoalmente a notícia da sua própria morte. O corpo dela chegou numa carrinha de um anónimo mineiro. O homem estacionou junto à entrada da Vila, anichou o veículo à sombra de um portentoso embondeiro. Chamaram Jesustino para tomar conta da desocorrência. Só ele ficou sabendo do finar de sua mana Luzmina. O magaíça depôs o caixão na areia, enrolou o dinheiro que o goês lhe passou e partiu numa nuvem de poeira.
Era noite quando Jesustino entrou em casa e se aproximou de Dona Constança. Havia uma cansada lamparina que fantasmeava o quarto. A esposa adivinhou-lhe o amargo no rosto:
Tem uma notícia triste, marido?
Muito triste.
Então, já sabe como me vai contar.
Ela deitou-se, despiu-se e esperou que o marido se enroscasse a seu lado. Depois beijou-o e abraçou-o com força. Enquanto faziam amor ele lhe foi contando a novidade da morte de Luzmina, desfiando a tristeza que a mulher ia sufocando a golpes de ternura, corpo diluindo-se em outro corpo.
No fim do namoro, lágrimas já secas, Constança ainda espreitou o rosto do marido. Queria certificar-se de que não era uma mentira que ele inventara só para fazer amor. Mas o cansaço de Jesustino era genuíno. Ninguém pode estar assim fatigado se não estiver sofrendo de verdadeira melancolia.
Luzmina, de fato, falecera. Todavia, em Vila Longe a morte não é exatamente um fato. A tia falecera como é devido naquele lugar: sem nunca chegar a morrer. Quer dizer: a sua alma ficara acesa, brilhando entre sombras, suspiros e silêncios.
No dia seguinte, dilacerado pela dor de perder a sua única irmã, Jesustino tentou o suicídio. A receita era fatal: o venenoso tubérculo da gloriosa, essa florinha vermelha que espontaneja na areia das dunas. O goês esteve sete dias de coma, caíram-lhe os cabelos, dissolveram-se-lhe as unhas, azularam-se-lhe as babas. No oitavo dia, soergueu-se na cama, olhos piscos, mastigando palavras:
Nem morrer sei.
Você me matou foi a mim, meu caro Jesustino Rodrigues, murmurou Constança. O tom acusatório era tão sincero que o marido se interrogou sobre que segredos saberia a sua companheira.

***
De tudo isso estava distante Mwadia. Tudo aquilo ocorrera durante a sua longa ausência em Antigamente. A moça até se assustou quando a mão gorda de Dona Constança recobriu os seus dedos magros para a reconduzir ao presente.
Essa é a última fotografia de sua Tia...
Mão na mão, as duas mulheres percorreram as linhas do rosto da falecida Luzmina, como se lhe corrigissem o destino. Alinhavam a moldura na parede como quem ajeita flores sobre uma campa.
Que idade ela tinha nesta foto?
Tinha, não. Tem.
Não entendo.
Essa foto ela tirou-a com trinta e cinco anos. Mas a sua Tia continua a envelhecer na imagem.
Ora, mãe...
A última vez que peguei nessa foto ela nem tinha estes cabelos brancos...
Regressaram à mesa da cozinha para terminarem o chá. A mãe demorou a ajeitar o corpo na cadeira. Depois, puxou de uma cesta e dela retirou peças de vestuário. E fez aquilo que sempre fazia para ganhar sono: dobrou as peúgas coloridas de suas meninas. Os dedos gordos convocavam, uma por uma, as filhas que há muito saíram de casa. A voz já se inundava de sono quando Constança insistiu:
Lembra-se do tempo em que eu passava tardes e tardes costurando?
Lembro-me, mãe. Eram tantas filhas, tantas roupas!
A maior parte das vezes, eu só fingia que costurava.
Fingia? Fingia para quê?
Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes nervosas suspeitas.
Enquanto ia costurando, o seu pai não imaginava que eu estava pensando. Minha cabeça viajava por todo lado.
Nesses escassos momentos, Constança era mulher sem ter que pedir licença, existindo sem ter que pedir perdão.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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