sexta-feira, 7 de setembro de 2018

A nova agenda humana

No despertar do terceiro milênio, a humanidade acorda, distende os membros e esfrega os olhos. Restos de algum pesadelo horrível ainda atravessam sua mente. “Havia algo como arame farpado, e nuvens enormes em forma de cogumelo. Ah, bem, foi apenas um sonho ruim.” A humanidade vai até o banheiro, lava o rosto, examina as rugas diante do espelho, prepara uma xícara de café e abre o jornal. “O que será que nos espera hoje?”
Durante milhares de anos a resposta a essa questão não se alterou. Os mesmos três problemas preocupavam as pessoas da China no século XX, da Índia medieval e do antigo Egito. Fome, pestes e guerra sempre estiveram entre as principais dificuldades enfrentadas. Geração após geração os humanos rezaram para todos os anjos, deuses e santos e inventaram um sem-número de ferramentas, instituições e sistemas sociais — mas seguem morrendo aos milhões de inanição, epidemias e violência. Muitos pensadores e profetas concluíram que a fome, a peste e a guerra deviam fazer parte do plano cósmico de Deus ou de nossa natureza imperfeita, e nada a não ser o fim dos tempos nos livraria delas.
Mas no alvorecer do terceiro milênio a humanidade chegou a uma incrível constatação. A maior parte das pessoas raramente pensa sobre isso, porém nas últimas poucas décadas demos um jeito de controlar a fome, as pestes e a guerra. É evidente que esses problemas não foram completamente resolvidos, no entanto foram transformados de forças incompreensíveis e incontroláveis da natureza em desafios que podem ser enfrentados. Não precisamos rezar para nenhum deus ou santo para que nos salvem deles. Sabemos bem o que precisa ser feito para evitar a fome, as pestes e a guerra — e geralmente somos bem-sucedidos ao fazê-lo.
É verdade que ainda se verificam fracassos dignos de nota; mas, quando deparamos com eles, não mais damos de ombros e dizemos “Bem, é assim que as coisas funcionam em nosso mundo imperfeito”, ou “Que seja feita a vontade de Deus”. Sim, quando a fome, as pestes ou a guerra saem de nosso controle, costumamos achar que alguém deve ter se equivocado, estabelecemos uma comissão de inquérito e prometemos que na próxima vez faremos melhor. E isso efetivamente funciona. Essas calamidades de fato acontecem cada vez com menos frequência. Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos. No início do século XXI, o ser humano médio tem muito mais probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s do que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda.
Por isso, apesar de presidentes, executivos e generais ainda terem suas agendas preenchidas por crises econômicas e conflitos militares, na escala cósmica da história o gênero humano pode erguer os olhos e começar a perscrutar novos horizontes. Se realmente a fome, a peste e a guerra estão sob controle, o que irá substituí-las como prioridade na agenda humana? Como bombeiros em um mundo sem incêndios, o gênero humano no início do século XXI deve fazer a si mesmo uma pergunta sem precedente: o que vamos fazer conosco? Num mundo saudável, próspero e harmonioso, o que vai exigir nossa atenção e nossa engenhosidade? Essa pergunta torna-se duplamente urgente em razão dos novos e imensos poderes que a biotecnologia e a tecnologia da informação estão nos oferecendo. O que vamos fazer com todo esse poder?
Antes de responder a essa pergunta, precisamos nos estender um pouco mais sobre a fome, a peste e a guerra. A informação de que as controlamos pode chocar muitas pessoas, para quem essa alegação pode soar ultrajante, extremamente ingênua ou talvez insensível. E quanto aos bilhões de pessoas que sucateiam suas vidas sobrevivendo com menos de dois dólares por dia? E quanto à crise da aids na África, ou as guerras que estão sendo travadas na Síria e no Iraque? Para abordar esses temas preocupantes, examinemos de perto o mundo no início do século XXI, antes de explorar a agenda humana para as próximas décadas.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário