domingo, 26 de agosto de 2018

O manjar

Os dois estavam comendo sem falar. Só os dois na mesa, e os dois em silêncio. Aí ele fez um comentário. Só por fazer.
Não existe nada pior do que risoto frio.
Ela só olhou para ele e continuou mastigando.
Daí a pouco disse:
Bunda caída.
O quê?
Bunda caída. É pior do que risoto frio.
Novo silêncio. Depois ela completou:
E risoto frio tem jeito. É só esquentar.
Mais dois ou três minutos. Ele:
Bunda caída também tem jeito.
Como?
Ginástica. Plástica.
Desta vez o silêncio durou até o fim do jantar. Ela levantou e levou os pratos para a cozinha. Depois, como ela estivesse demorando para voltar, ele gritou:
Matilde!
Ela apareceu na porta da cozinha.
Que mais? — disse.
Sobremesa, ué.
Não. Que mais? Você já criticou meu risoto, já criticou minha bunda... Que mais?
EU critiquei sua bunda?
Eu faço plástica. Me dá o dinheiro que eu faço.
Tidinha!
Não seja por isso, Vicente.
Ela desapareceu na cozinha. Ele esperou um pouco e depois foi atrás. Ela estava olhando fixo para uma massa disforme dentro de uma fôrma, em cima do balcão.
O que é isso? — perguntou ele.
Manjar branco.
A massa era escura. Ele chegou a abrir a boca para falar, mas decidiu ficar quieto.
Depois, na mesa, comeu o manjar e fez “Mmmmm”.
Ela levantou-se da mesa, pegou algumas coisas no banheiro e no quarto e foi para a casa da Enolina, que tinha comprado uma TV de 59 polegadas. Decidida a não voltar mais.
Aguentava tudo, menos a ironia.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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