Recebi de Natal, de
um amigo que nunca vejo, uma fotografia do Monte Atlas. Ele a trouxe
de uma viagem a Agadir e, por algum motivo que não soube explicar,
decidiu que ela me pertencia. Já estive no Marrocos, rastejei na
medina de Marrakesh e respirei o ar opressivo de Fez. Jantei (e fui
assaltado) em um restaurante de Casablanca. Desci com amigos até o
Magreb, mas não avistei o Monte Atlas.
Junto com a
fotografia, que mostra um abismo derramado sobre o deserto, veio um
cartão: “Para você se lembrar do que nunca teve”. Reli muitas
vezes a dedicatória, não a decifrei. Mastiguei a dúvida durante
dias até que, na última página de Talvez uma história de amor,
romance de Martin Page (Rocco, tradução de Bernardo Ajzenberg),
creio que encontrei uma chave.
O romance conta a
história de Virgile, um publicitário parisiense que um dia, ao
chegar em casa, encontra uma mensagem enigmática em sua secretária
eletrônica. As palavras são fortes: “Aqui é Clara. Sinto muito,
mas prefiro que a gente pare por aqui. Vou me separar de você,
Virgile. Não quero mais”.
O problema de
Virgile é que ele nunca amou, ou mesmo conheceu, uma mulher chamada
Clara. No entanto, a mensagem é firme e se dirige, claramente, a
ele. Descobrir quem é essa mulher que dele se separa sem que ele
nunca a tenha conhecido se torna, para Virgile, uma missão. O
romance de Martin Page é a história espantosa de sua busca.
Salto as 157
páginas do livro direto às linhas finais, que remetem à fotografia
que ganhei de presente. Não sei se estou (acho que estou) estragando
um pouco a surpresa do leitor. Talvez não: o importante no romance
de Martin Page não é o encontro de Clara, mas sua busca.
Lá está, no
penúltimo parágrafo do romance: “O instante ausente de seu
encontro permanecerá para sempre presente dentro dele como um órgão
secreto que não se encontra em nenhum livro de anatomia, mas sem o
qual o coração não conseguiria bater”.
A fotografia do
Monte Atlas me leva, da mesma forma, a esse coração ausente que, no
entanto, pulsa. Talvez seja só um órgão em potência – algo que
“pode ser”, não importando mais se é ou não. Vocês já se
acostumaram comigo, eu espero. Já se habituaram a meu vício de
ligar tudo, sempre, à literatura. Mas como deixar de pensar que,
quando fala desse coração ausente que, no entanto, nos centra, Page
nos fala da própria escrita?
Há outro momento
na estranha aventura de Virgile que me interessa muito. Surge dez
páginas antes. Na agência publicitária em que ele trabalha, todos
o admiram. Decidem, então, promovê-lo a diretor e lhe dar um
aumento de salário. Virgile, porém, recusa a promoção. Chega a
recorrer, sem sucesso, ao sindicato, em busca de ajuda para
permanecer onde está.
Um dia, desanimado,
vem-lhe a figura de Antígona, que se opôs a Creonte porque ele a
proibiu de oferecer uma sepultura a seu irmão. Foi presa e morreu
sozinha. Pagou com a vida sua desobediência. Virgile não quer
morrer. Sente-se frágil e descobre que precisa se proteger. Pensa:
“Os pobres, os fracos, os sensíveis e os exilados precisam ser
silenciosos e espertos”.
Virgile lembra,
então, dos elefantes, animais selvagens que, para não serem
dizimados, para sobreviverem, aceitaram a domesticação. Passaram a
trabalhar, com paciência e graça, em construções, ou como armas,
veículos ou em circos. Aceitaram os mais degradantes papéis para
continuar a viver.
Muitas espécies de
elefantes, as que não se adaptaram (as que não obedeceram) – por
exemplo, os elefantes de Atlas –, foram extintas. Aqueles que se
dedicaram a divertir os humanos nos zoológicos, nas caravanas e nas
arenas continuaram vivos. Virgile se vê como um elefante. Decide que
quer viver. Aceita a promoção na agência.
No seu interior,
como algo extinto (ausente), mas ainda assim presente (vivo),
sobrevive o animal selvagem e livre que, um dia, ele foi. Esse
coração inexistente é o seu centro. Ele sabe que esse centro,
embora não exista, continua a sustentá-lo. É a descoberta desse
centro, que ninguém acessa e ninguém destrói justamente porque não
existe, que permite que Virgile viva.
Precisa dar um nome
a esse vazio. Encontra o nome que procura em Clara. A mulher que
nunca conheceu e nunca amou, e de quem, no entanto, se separou, se
torna o centro de sua vida. A partir daí, pode obedecer, pode se
submeter – pode se exibir no grande picadeiro da modernidade –
que isso não mais o machucará. Dentro dele, existe um centro
intocado. Ninguém pode roubá-lo. Ninguém pode roubar Virgile de si
mesmo.
Descobre Virgile
que a realidade “é uma grande provedora de feridas”. Cascas,
cicatrizes, calombos encobrem algo que ali não está. Sua
psicanalista, a doutora Zetkin, deseja pôr o dedo na ferida de
Virgile. Deseja curá-la. Virgile sabe que ela não pode tocar o que
não existe – e que só por isso é apenas seu. E só por isso,
ainda, o sustenta.
Chegou a pensar que
tinha alguma doença neurológica e se submeteu a uma tomografia.
Submeter-se ao exame lhe devolveu o sentimento de existir. Mas,
quando recebe o resultado, nada aparece. Na tomografia, seu cérebro
se abre em oito cortes, “como se um açougueiro o tivesse
destroçado a golpes de machado”. Vasculha a imagem em busca de
Clara. Ela deveria estar em algum lugar ali dentro, só que não
está.
Um dia, Virgile lê
o Romance da múmia, de Théophile Gautier. Espelha-se, então,
na figura do arqueólogo apaixonado pela múmia da rainha Taousert,
um amor impossível por uma mulher morta. Clara é sua Taousert. Amor
impossível ou amor que torna todos os outros possíveis?
Volto a pensar na
literatura, que trata de coisas que não existem e, no entanto, nos
devolve a nosso centro. Um coração inexistente pulsa no centro das
ficções. Não o pegamos, ele não existe, mas nos arrasta.
O sonho modesto de
Virgile é reencontrar Clara para se desculpar. Sua amiga Faustine o
questiona: “Desculpar-se de que? De ser o que você é?”. Virgile
se envergonha do vazio que carrega no peito. É uma tolice. Sem esse
centro inexistente, que perfura a brutalidade do mundo, ele não
seria livre. Não seria Virgile.
José Castello,
in Sábados inquietos
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