Isaura entrou pelo
bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses
que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo
azulzinado, os zunzuns da gente no bazar.
A aparição da
mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto.
Escutei intímos desacordes, sangue para um lado, veias para outro.
É que eu não via
Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu
amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se
em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando se em
desordem.
Foi no tempo
colonial. Eu e Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma
casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos miúdos, em idade
mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha
contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu ir
passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões
enquanto ela me fazia rir com suas revelações. Que o patrão a
empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes.
Não havia parede em que ela, de pé, não tivesse deitado. Tudo
aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem?
Deus teria ouvidos para a vergonha de Isaurinha? Eu sonhava que me
subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia
sequer de terminar o sonho.
E agora Isaura
interrompia o meu existir, rompante adentro da cervejaria. Estava
quase na mesma, o tempo não a redesenhara. Magra, como sempre fora.
Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me
sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um
fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de
dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava.
Fazia o seguinte: pegava a beata distraída num cinzeiro do salão e
chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo e vinha ter
comigo no pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a
coruja.
Chegava se a mim e
vizinhávamo nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios
meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim
esse fumo. Sentia aquecer me meus interiores, a saliva quase
fervendo. Depois, não era só a boca: todo meu corpo se ia
esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um
cruzando o peito de outro.
Praticávamos o
quê? Fumigação boca a boca? Uma coisa era de certeza: meu endereço
era o céu, nesses instantes. Isaura me exalava eternidades, lábios
vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.
Simples
procedimento aquele: Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas
ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele
trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se
adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga em meu peito eram
simples acidentes sem percurso.
Até que, certa
vez, o patrão nos supreendeu naquelas disposições. Choveram
insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi
as inteiras culpas. Construí a versão: eu a tinha assaltado,
obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso,
despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por
baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias
dela.
Vinte anos depois,
Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela
trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.
A mulher se sentou
em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas Desfiou memória,
entre fumos e goles de cerveja.
— Tenho
tantíssima lembrança. Não chegava uma vida para falar.
— Que bom,
Isaura.
— Mas a lembrança
favorita é você, Raimunda-no.
— Não diga isso.
— Lhe digo: esse
fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um
beijo.
Estremeci. Aquilo
era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus
ditos. Sim, que ela, em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele
querer dela, por motivo de decências. É que ela era tão magra que
parecia má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas
melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.
— Porquê,
Isaura? Por que nunca me procurou?
— Porque lhe
deixei de amar. Foi aquela sua mentira para me proteger. Isso me fez
muito mal.
Desde o momento que
eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra. Ofensa de quê?
Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se
tivesse passado não o tempo mas a vida inteira. Levantou se,
arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse o mais importante
neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo
como se, pela segunda vez, minha vida se escoasse por aquela porta.
Minha voz, nem a reconheci:
— Sopre me outra
vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.
Ela me olhou, os
olhos tão longe que parecia nem terem focagem. Aspirou fundo o
cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela
colou seus lábios em mim se fabulou o seguinte: a mulher se
converteu em fumo e se desvaneceu primeiro no ar e, depois, lenta, na
aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.
Mia Couto,
in Na Berma de
Nenhuma Estrada
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