quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Isaura, para sempre dentro de mim

Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado, os zunzuns da gente no bazar.
A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei intímos desacordes, sangue para um lado, veias para outro.
É que eu não via Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando se em desordem.
Foi no tempo colonial. Eu e Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu ir passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir com suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ela, de pé, não tivesse deitado. Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? Deus teria ouvidos para a vergonha de Isaurinha? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho.
E agora Isaura interrompia o meu existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. Magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte: pegava a beata distraída num cinzeiro do salão e chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo e vinha ter comigo no pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a coruja.
Chegava se a mim e vizinhávamo nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca: todo meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzando o peito de outro.
Praticávamos o quê? Fumigação boca a boca? Uma coisa era de certeza: meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exalava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.
Simples procedimento aquele: Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga em meu peito eram simples acidentes sem percurso.
Até que, certa vez, o patrão nos supreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão: eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela.
Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.
A mulher se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas Desfiou memória, entre fumos e goles de cerveja.
Tenho tantíssima lembrança. Não chegava uma vida para falar.
Que bom, Isaura.
Mas a lembrança favorita é você, Raimunda-no.
Não diga isso.
Lhe digo: esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.
Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela, em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que ela era tão magra que parecia má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.
Porquê, Isaura? Por que nunca me procurou?
Porque lhe deixei de amar. Foi aquela sua mentira para me proteger. Isso me fez muito mal.
Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra. Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo mas a vida inteira. Levantou se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse o mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se escoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci:
Sopre me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.
Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem terem focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela colou seus lábios em mim se fabulou o seguinte: a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu primeiro no ar e, depois, lenta, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.
Mia Couto, in Na Berma de Nenhuma Estrada

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