domingo, 26 de agosto de 2018

Dar presentes

Dar Presentes é uma arte sutil. Porque um presente diz à pessoa o que penso dela. Um presente, para ser presente, deve ser dado ao desejo do outro — desejo que ele não diz e que eu tenho de adivinhar. Seria uma grosseria muito grande dar um espelho de presente — pode ser até um espelho de cristal — a uma pessoa que se sente feia... Porque o que ela deseja é não se ver. À medida que o tempo vai passando, a gente gosta cada vez menos dos espelhos... Um pavão ficaria feliz se ganhasse um espelho. Claro, não estou me referindo à ave, porque as aves não sabem o que é um espelho. Há um tico-tico que diariamente trava uma batalha com a sua imagem num vidro da minha janela... Mas tem muita gente que gosta de exibir o rabo colorido.
Dar um livro a uma pessoa, desde que não seja livro de autoajuda, é um elogio. É dizer para ela: “Você é inteligente! Você tem prazer em ler! Nesse livro há vida e sangue misturados com as letras!”.
E há tantos livros bons nas livrarias. Mas essa expressão “livro bom” é de sentido confuso. Por exemplo, A montanha mágica, do Thomas Mann, é uma obra monumental. Juízo igual cabe à sua trilogia sobre José do Egito. Leio, admiro, assombro-me — mas a coisa fica no cérebro, não corre no meu sangue.
A mesma coisa eu digo sobre a pintura: admiro Miró, Picasso... Mas eu não gostaria de estar dentro de suas telas. Gostaria, sim, de estar dentro de uma tela de Monet ou de Carl Larsson. Se você nunca ouviu falar de Carl Larsson, eu prometo: pelo menos tentarei escrever algo sobre seus quadros, deliciosamente infantis.
Meu julgamento, então, não é julgamento de um crítico. É julgamento de um comedor de livros. Todo escritor deseja que seus livros sejam comidos. Todo escritor deseja que seus livros sejam lidos antropofagicamente. Então, posso falar dos livros que comi e gostei. E a prova dos nove é essa: eu daria muito dinheiro para que nunca os houvesse lido; só para ter o prazer de lê-los pela primeira vez...
Ah! Tantos livros do Mia Couto. Aqui vão alguns ditos soltos: “Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos” (Juca Sabão). “O mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é” (Avô Mariano). Era o funeral do avô Mariano: “Mesmo ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É assim no caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um corpo...” “O avô se gloriava das suas muitas conquistas. O que ele insistia era o mandamento: ‘– Fazer amor, sim e sempre. Dormir com mulher, isso é que nunca’. E explicava: Dormir com alguém é uma intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades. ‘Nunca dormi com mulher, é verdade. Mas dormi em mulher. E isso pouco homem fez...’” “Vantagem de pobre é saber esperar. Esperar sem dor. Porque é espera sem esperança...” “Não passe a mão pelas fotos que se estragam. Elas são o contrário de nós; apagam-se quando recebem carícias...” “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora...” “Hoje acordou insistindo que era domingo. Concedi o dia de mão beijada. Que importância tinha? Dulcineusa tinha sido educada em igreja. O que a fazia crer não era o que o padre falava. Mas porque ele falava cantando. Alguém mais fala cantando? O Padre Nunes era o único. Cantava, e quando cantava, no recinto da igreja, em coro e com eco, aquilo era tudo verdade...” “Olhar de burro está sempre acolchoado de um veludo afetuoso...”
Resta-me cumprir, algum dia, a promessa: escrever sobre as pinturas de Carl Larsson…
Rubem Braga, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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