Dar
Presentes é uma arte sutil. Porque um presente diz à pessoa o que
penso dela. Um presente, para ser presente, deve ser dado ao desejo
do outro — desejo que ele não diz e que eu tenho de adivinhar.
Seria uma grosseria muito grande dar um espelho de presente — pode
ser até um espelho de cristal — a uma pessoa que se sente feia...
Porque o que ela deseja é não se ver. À medida que o tempo vai
passando, a gente gosta cada vez menos dos espelhos... Um pavão
ficaria feliz se ganhasse um espelho. Claro, não estou me referindo
à ave, porque as aves não sabem o que é um espelho. Há um
tico-tico que diariamente trava uma batalha com a sua imagem num
vidro da minha janela... Mas tem muita gente que gosta de exibir o
rabo colorido.
Dar
um livro a uma pessoa, desde que não seja livro de autoajuda, é um
elogio. É dizer para ela: “Você é inteligente! Você tem prazer
em ler! Nesse livro há vida e sangue misturados com as letras!”.
E
há tantos livros bons nas livrarias. Mas essa expressão “livro
bom” é de sentido confuso. Por exemplo, A montanha mágica, do
Thomas Mann, é uma obra monumental. Juízo igual cabe à sua
trilogia sobre José do Egito. Leio, admiro, assombro-me — mas a
coisa fica no cérebro, não corre no meu sangue.
A
mesma coisa eu digo sobre a pintura: admiro Miró, Picasso... Mas eu
não gostaria de estar dentro de suas telas. Gostaria, sim, de estar
dentro de uma tela de Monet ou de Carl Larsson. Se você nunca ouviu
falar de Carl Larsson, eu prometo: pelo menos tentarei escrever algo
sobre seus quadros, deliciosamente infantis.
Meu
julgamento, então, não é julgamento de um crítico. É julgamento
de um comedor de livros. Todo escritor deseja que seus livros sejam
comidos. Todo escritor deseja que seus livros sejam lidos
antropofagicamente. Então, posso falar dos livros que comi e gostei.
E a prova dos nove é essa: eu daria muito dinheiro para que nunca os
houvesse lido; só para ter o prazer de lê-los pela primeira vez...
Ah!
Tantos livros do Mia Couto. Aqui vão alguns ditos soltos: “Encheram
a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há
duas nações — a dos vivos e a dos mortos” (Juca Sabão). “O
mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é”
(Avô Mariano). Era o funeral do avô Mariano: “Mesmo ao longe,
já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É assim no
caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos
compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um
corpo...” “O avô se gloriava das suas muitas conquistas. O que
ele insistia era o mandamento: ‘– Fazer amor, sim e sempre.
Dormir com mulher, isso é que nunca’. E explicava: Dormir com
alguém é uma intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é
que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e a sua alma se
transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades. ‘Nunca
dormi com mulher, é verdade. Mas dormi em mulher. E isso pouco homem
fez...’” “Vantagem de pobre é saber esperar. Esperar sem dor.
Porque é espera sem esperança...” “Não passe a mão pelas
fotos que se estragam. Elas são o contrário de nós; apagam-se
quando recebem carícias...” “O importante não é a casa onde
moramos. Mas onde, em nós, a casa mora...” “Hoje acordou
insistindo que era domingo. Concedi o dia de mão beijada. Que
importância tinha? Dulcineusa tinha sido educada em igreja. O que a
fazia crer não era o que o padre falava. Mas porque ele falava
cantando. Alguém mais fala cantando? O Padre Nunes era o único.
Cantava, e quando cantava, no recinto da igreja, em coro e com eco,
aquilo era tudo verdade...” “Olhar de burro está sempre
acolchoado de um veludo afetuoso...”
Resta-me
cumprir, algum dia, a promessa: escrever sobre as pinturas de Carl
Larsson…
Rubem
Braga,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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