quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Da castidade

Eu amo a floresta. É ruim viver nas cidades: ali são demasiados os que estão no cio.
Não é melhor cair nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher no cio?
E observai esses homens: seu olhar já o diz — eles nada conhecem de melhor na terra do que deitar-se com uma mulher.
Há lama no fundo de suas almas; e que desgraça, se sua lama também tiver espírito!
Se ao menos fôsseis perfeitos como animais! Mas do animal é própria a inocência.
Aconselho-vos eu a matar vossos sentidos? Eu vos aconselho a inocência dos sentidos.
Aconselho-vos a castidade? A castidade é virtude em alguns, mas em muitos outros, quase um vício.
Esses podem se abster, mas a cadela sensualidade lança olhares invejosos de dentro de tudo que fazem.
Ainda nas alturas de sua virtude e no interior do frio espírito segue-os essa besta com sua inquietação.
E como sabe a cadela sensualidade mendigar uma porção de espírito, quando lhe é negada uma porção de carne!
Vós amais as tragédias e tudo o que parte o coração? Mas eu desconfio de vossa cadela.
Vossos olhares me parecem muito cruéis, e buscais avidamente por sofredores. Vossa volúpia não teria apenas se disfarçado e agora se chama compaixão?
E também esta parábola vos dou: muitos que queriam expulsar seus demônios entraram eles mesmos nos porcos.
Àquele para quem a castidade é difícil, ela deve ser desaconselhada: a fim de que não se torne o caminho para o inferno — isto é, para a lama e a lascívia da alma.
Falo de coisas sujas? Para mim isso não é o pior.
Não quando a verdade é suja, mas quando é rasa, o homem do conhecimento reluta em entrar nas suas águas.
Em verdade, existem os castos do fundo do ser: eles são mais mansos de coração, riem com mais gosto e mais frequentemente do que vós.
Riem também da castidade, e perguntam: “Que é a castidade?
Não é a castidade uma tolice? Mas essa tolice veio a nós, não fomos a ela.
Oferecemos abrigo e afeto a essa visitante: agora ela habita conosco — que permaneça o tempo que quiser!”
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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