O sol tava tão alto quando acordei que
achei que era depois das oito. Fiquei deitado na grama e na sombra
fresca pensando sobre as coisas, me sentindo descansado e bastante
confortável e satisfeito. Podia ver o sol saindo de um ou dois
buracos, mas no geral tinha árvores grandes por toda parte e sombra
entre elas. Tinha lugares pontilhados no chão onde a luz filtrava
pelas folhas, e os lugares salpicados se mexiam um pouco, mostrando
que tinha uma brisa lá no alto. Dois esquilos se empinaram nas patas
de trás e conversaram comigo muito amigos.
Eu tava com uma baita preguiça e muito
bem acomodado – não queria me levantar e fazer o café da manhã.
Bem, tava cochilando de novo, quando tenho a impressão de ouvir um
som surdo de “bum!” bem longe rio acima. Desperto, me apoio no
cotovelo e escuto; logo depois ouço de novo. Levantei pulando e fui
olhar por um buraco nas folhas, vejo muita fumaça sobre a água
muito longe rio acima – quase em frente da barca. E a barca cheia
de gente descia flutuando. Já sabia qual era o problema. “Bum!”
vejo a fumaça branca jorrar do lado da barca. Sabe, eles tavam
disparando o canhão na água, tentando trazer minha carcaça pra
tona.
Tava com muita fome, mas não ia dar pra
acender um fogo, porque eles podiam ver a fumaça. Então me sentei
ali e fiquei observando a fumaça do canhão e escutando a explosão.
O rio tinha um quilômetro e meio de largura naquele ponto e sempre
parece bonito numa manhã de verão – assim eu tava me divertindo
bastante vendo eles à caça dos meus restos, só que queria ter pelo
menos alguma coisa pra comer. Acontece que pensei que eles sempre
colocam mercúrio em pedaços de pão e jogam os pães na água,
porque eles vão direto até a carcaça do afogado e ali param. Então
eu disse, vou ficar à espreita e, se um desses pedaços passar
flutuando à minha procura, vou dar uma chance dele me encontrar. Fui
pro lado de Illinois pra ver se tinha sorte e não fiquei
desapontado. Apareceu um grande pão duplo, e eu quase peguei ele,
com uma vara bem longa, mas meu pé escorregou e ele se soltou e saiu
flutuando. É claro que eu tava onde a corrente chegava mais perto da
margem – eu sabia muito bem onde ficar. Mas daí a pouco aparece
outro pão, e desta vez consegui pegar. Arranquei o tampão e sacudi
pra tirar o pouquinho de mercúrio, depois enfiei os dentes no pão.
Era “pão de padaria” – o que a gente fina come – bem
diferente daquela broa de milho sórdida.
Arrumei um bom lugar entre as folhas e
sentei ali numa tora, mastigando o pão e observando a barca, muito
satisfeito. E então pensei numa coisa. Imagino que a viúva ou o
pároco ou alguém rezou pra esse pão me encontrar, e ele veio e me
encontrou. Assim não tem dúvida que existe alguma coisa nessa
história. Quero dizer, existe alguma coisa quando alguém como a
viúva ou o pároco reza, mas não vai funcionar pra mim, e imagino
que só funciona pro tipo certo de gente.
Acendi o cachimbo e pitei com gosto e
devagar, e continuei a observar. A barca tava flutuando com a
corrente, e achei que tinha uma chance de ver quem tava a bordo
quando ela se aproximasse, porque ela ia passar bem perto, por ali
onde o pão passou. Quando já tava bem avançada na minha direção,
apaguei o cachimbo e fui até onde pesquei o pão e me deitei atrás
de um tronco sobre a margem num pequeno espaço aberto. Ali onde o
tronco se dividia, eu podia espiar.
Daí a pouco ela aparece, e a corrente
vinha empurrando a barca pra tão perto que eles podiam colocar pra
fora uma prancha e descer na praia. Quase todo mundo tava no barco.
Papai, o juiz Thatcher, Bessie Thatcher, Jo Harper, Tom Sawyer, sua
velha tia Polly, Sid e Mary e muitos mais. Todo mundo falava do
assassinato, mas o capitão interrompeu e disse:
– Prestem bem atenção agora. A
corrente chega no ponto mais próximo da terra aqui, e talvez ele
tenha sido arrastado pra praia e ficado emaranhado na moita da beira
da água. Assim espero, pelo menos.
Eu é que não esperava. Eles todos se
juntaram e inclinaram o corpo sobre a amurada, quase na minha cara, e
ficaram em silêncio, observando com todas as suas forças. Eu podia
ver eles muito bem, mas eles não podiam me ver. Então o capitão
gritou:
– Afastem-se! – e o canhão disparou
um explosivo bem na minha frente, tão forte que me deixou surdo com
o barulho e quase cego com a fumaça, e achei que tava perdido. Se
tivessem atirado umas balas junto, acho que iam conseguir o cadáver
que tavam procurando. Bem, vejo que não me machuquei, graças a
Deus. O barco continuou a flutuar e saiu da vista ao redor da curva
da ilha. Eu escutava as explosões, de vez em quando, cada vez mais
longe, e daí a pouco, depois de uma hora, não escutava mais nada. A
ilha tinha quase cinco quilômetros de comprimento. Achei que eles
tinham chegado na outra ponta e que tavam desistindo. Mas eles inda
não desistiram por algum tempo. Viraram ao redor da outra ponta da
ilha e começaram a subir o canal no lado do Missouri, movidos a
vapor, e disparando os canhões de vez em quando pelo caminho. Cruzei
a ilha e passei pro outro lado pra observar eles subindo. Quando
chegaram bem na frente da ponta da ilha, pararam de atirar,
desembarcaram na costa do Missouri e foram pra casa na cidade.
Eu sabia que tava tudo certo agora. Mais
ninguém vinha me caçar. Tirei meus tarecos da canoa e arrumei um
belo acampamento bem no meio da mata. Armei uma espécie de tenda com
os cobertores pra colocar as minhas coisas, pois assim a chuva não
podia molhar nada. Pesquei um bagre e retalhei o peixe com a minha
serra, e perto do anoitecer acendi uma fogueira e jantei. Depois
estendi uma linha pra pegar uns peixes pro café da manhã.
Quando já tava escuro, fiquei sentado ao
lado da fogueira fumando e me sentindo bem satisfeito, mas daí a
pouco me senti meio solitário, então fui sentar na margem do rio e
escutei as correntes passando e carregando tudo, e contei as estrelas
e os troncos à deriva e as toras unidas em balsas que desciam, e
depois fui dormir. Não tem melhor maneira de passar o tempo quando a
gente se sente só, porque não dá pra continuar se sentindo assim,
logo a gente acaba com a tristeza.
E assim foi por três dias e noites. Nada
diferente – sempre a mesma coisa. Mas no dia seguinte fui explorar
a mata na ilha. Eu era o dono da ilha; tudo pertencia a mim, vamos
dizer, e eu queria conhecer tudo sobre a ilha, mas acima de tudo eu
queria matar tempo. Encontrei muitos morangos, maduros e excelentes;
e uvas verdes e framboesas verdes; e as amoras verdes mal tavam
começando a aparecer. Todas iam estar maduras pra ser colhidas daí
a pouco, pensei.
Bem, andei sem rumo por dentro da mata
até que achei que não tava longe da outra ponta da ilha. Eu tinha a
minha espingarda, mas não tinha matado nada, era pra proteção.
Pensei em pegar uma caça mais perto de casa. A essa altura quase...
quase pisei numa cobra de bom tamanho, e ela saiu escorregando pela
grama e pelas flores, e eu atrás tentando dar um tiro nela.
Continuei rápido e de repente dei um pulo pra trás bem diante das
cinzas de uma fogueira que ainda tava fumegando.
O meu coração pulou entre os pulmões.
Não esperei pra ver muito mais, travei a espingarda e voltei furtivo
na ponta dos pés o mais rápido que pude. De vez em quando parava um
segundo, entre as folhas espessas, e escutava, mas a minha respiração
tava tão forte que não eu conseguia ouvir mais nada. Escapuli
sorrateiro por mais um pedaço, depois prestei atenção de novo; e
assim por diante, e assim por diante; se vejo um cepo, penso que é
um homem; se piso num galho e ele quebrou, é como se alguém tivesse
cortado o meu sopro em dois e eu só ficasse com metade, e ainda por
cima com a metade pequena.
Quando cheguei no acampamento, eu não
tava me sentindo destemido, me restava pouca coragem, mas disse pra
mim mesmo, não é hora de brincadeira. Então peguei toda a minha
tralha e levei pra canoa de novo pra não ficar à vista, e apaguei o
fogo e espalhei as cinzas ao redor pra parecer um velho acampamento
do ano passado, e aí subi numa árvore.
Acho que fiquei lá em cima da árvore
umas duas horas, mas não vi nada, não ouvi nada – só achei
que ouvi e vi umas mil coisas. Bem, eu não podia ficar lá em cima
pra sempre, então acabei descendo, mas continuei na mata cerrada e
alerta o tempo todo. Pra comer só consegui frutinhas e o que tinha
sobrado do café da manhã.
Quando deu a noite, eu tava com bastante
fome. Então quando ficou bem escuro, deslizei pra fora da margem
antes da lua aparecer e remei até a margem de Illinois – uns
quatrocentos metros. Entrei na mata e preparei meu jantar, e já tava
quase decidido a ficar ali a noite toda quando ouço um
plankiti-plank, plankiti-plank, e eu disse pra mim mesmo, cavalos
chegando, e em seguida ouvi vozes de gente. Carreguei tudo pra canoa
o mais rápido que pude e depois segui me arrastando pela mata pra
ver o que podia descobrir. Não tinha andado muito quando ouço um
homem dizer:
– Melhor acampar por aqui, se
encontrarmos um bom lugar, os cavalos tão quase estropiados. Vamos
dar uma olhada ao redor.
Não esperei mais, empurrei a canoa pra
água e remei sem dificuldade pra bem longe. Amarrei o bote no lugar
de antes e pensei em dormir na canoa.
Não dormi muito. Não tinha jeito de
conseguir, por causa dos pensamentos. E, toda vez que acordava,
achava que alguém tinha me agarrado pelo cangote. Então o sono não
me fez bem. Daí a pouco digo pra mim mesmo, não posso viver deste
jeito; vou tratar de descobrir quem tá aqui na ilha comigo; é
descobrir ou me rebentar. Bem, no mesmo minuto me senti melhor.
Então peguei meu remo e deslizei pra
longe da margem só um pouco e então deixei a canoa deslizar entre
as sombras. A lua tava brilhando, e fora das sombras tinha quase
tanta luz que nem de dia. Fiquei uma boa hora espiando, tudo parado
como pedras e em sono profundo. Bem, a essa altura eu tava quase na
outra ponta da ilha. Uma brisa fria e assoviante começou a soprar, e
isso era um bom sinal, a noite tava quase no fim. Viro a canoa com o
remo e embico pra margem; depois peguei minha espingarda, escorreguei
pra fora e entrei na beira da mata. Sentei num tronco e olhei pelo
meio das folhas. Vejo a lua abandonar seu posto, e a escuridão
começar a cobrir o rio. Mas em pouco tempo enxergo uma risca fraca
sobre o topo das árvores e sabia que o dia tava chegando. Então
peguei a espingarda e saí de mansinho pra aquele lugar da fogueira
de acampamento que tinha achado, parando a cada minuto ou dois pra
escutar. Mas só que não tive sorte, não conseguia encontrar o
lugar. Mas logo, logo, com toda certeza, vi um vislumbre de fogo, bem
longe entre as árvores. Fui pra lá, cuidando e bem devagar. Em
pouco tempo já tava bem perto pra dar uma olhada e vi que tinha um
homem deitado no chão. Quase me deu uns tremeliques. Ele tava com um
cobertor enrolado na cabeça, e a cabeça tava quase na fogueira.
Sentei ali atrás de uma moita, quase a dois metros de distância, e
não despregava os olhos dele. Agora já tava cinzento com a luz do
dia. Logo depois ele bocejou, espreguiçou, levantou o cobertor, e
era o Jim da srta. Watson! Fiquei realmente contente de ver Jim. Eu
disse:
– Alô, Jim! – e pulei aparecendo.
Ele levantou com um salto e me fitou como
um louco. Depois cai de joelhos, junta as mãos e diz:
– Num me faz mal – não! Nunca fiz
mal prum fantasma. Sempre gostei dos morto e fiz tudo que podia pra
eles. Ocê vai entrá no rio de novo, que é o seu lugá, e num faiz
nada pro veio Jim, que sempre foi seu amigo.
Bem, não levei muito tempo fazendo ele
entender que eu não tava morto. Eu tava muito contente de ver Jim.
Não tava mais sozinho. Disse a ele que não tava com medo dele
contar pras pessoas onde é que eu andava. Continuei a falar, mas ele
só ficou sentado ali me olhando, não dizia nada. Então eu falei:
– Já é dia. Vamos buscar um café da
manhã. Acende bem a fogueira do teu acampamento.
– Que adianta acendê um fogo pra
cozinhá morango e esses troço? Mas ocê tem uma espingarda, num
tem? Então a gente pode consegui uma coisa mió que morango.
– Morango e esses troços – digo eu.
– É disso que ocê tá vivendo?
– Num consegui otra coisa – diz ele.
– Ora, desde quando ocê tá na ilha,
Jim?
– Cheguei aqui uma noite dispois que
mataram ocê.
– O quê, todo esse tempo?
– Sim... tudo isso.
– E ocê não tinha nada pra comer, só
esse lixo?
– Num, sinhô... nada mais.
– Bem, ocê tá quase morto de fome,
não?
– Acho que eu podia cumê um cavalo.
Podia. Quanto tempo ocê tá na ilha?
– Desde a noite que me mataram.
– Não! Ora, do que que ocê viveu? Mas
ocê tinha uma espingarda? Oh, sim, ocê tinha uma espingarda. Isso é
bom. Agora ocê mata uma coisa e eu vô fazê o fogo.
Então a gente foi pra onde tava a canoa,
e enquanto ele fazia um fogo num lugar aberto cheio de grama entre as
árvores, busquei farinha, toicinho e café, e cafeteira e
frigideira, e açúcar e xícaras de lata, e o preto ficou bastante
confuso, porque ele achava que tudo aparecia por feitiçaria. Peguei
também um bagre bem grande, e Jim limpou o peixe com a sua faca e
fritou.
Quando o café da manhã tava pronto, a
gente se recostou na grama e comeu tudo quente e fumegante. Jim
atacou o peixe com toda força, porque tava quase morto de fome.
Depois, quando a gente já tava de barriga bem cheia, a gente ficou
quietinho e cheio de preguiça.
Daí a pouco Jim diz:
– Mas me diz uma coisa, Huck, quem é
que foi morto naquela choça, se num foi ocê?
Então contei pra ele toda a história, e
ele disse que era legal. Disse que Tom Sawyer não ia conseguir
traçar um plano melhor que o meu. Então eu perguntei:
– Como é que ocê tá aqui, Jim? E
como é que ocê chegou até aqui?
Ele ficou muito arisco e não disse nada
por um minuto. Aí disse:
– Talveiz é mió num dizê.
– Por quê, Jim?
– Bem, tenho meus motivo. Mas ocê num
vai falar de mim, se eu te contá, vai, Huck?
– O diabo me carregue se eu falar, Jim.
– Credito n’ocê, Huck. Eu... eu
fugi.
– Jim!
– Cuidado, ocê disse que num contava!
Ocê sabe que ocê disse que num ia contá, Huck.
– Tá bem. Eu disse que não ia contar
e vou manter a palavra. Palavra de índio honesto. As pessoas
vão me chamar de abolicionista sórdido e vão me desprezar por
ficar calado – mas não faz mal. Não vou contar e de todo jeito
não vou voltar pra lá. Então me conta o que aconteceu.
– Ocê vê, era sempre assim. A veia
dama – a srta. Watson – ela me xinga o tempo todo, e me trata
mal, mas ela sempre dizia que num me vendia pra Orleans. Mas eu vi
que tinha um traficante de negro rondano bastante o lugá nos últimos
tempo e comecei a ficá com medo. Uma noite eu me arrasto inté a
porta, bem tarde, e a porta num tava bem fechada, e escuto a veia
dama contá pra viúva que ela vai me vendê pra Orleans, ela num
queria, mas ela podia consegui oitocentos dólar por mim, e era uma
pilha tão grande de dinheiro que ela num podia resisti. A viúva ela
tenta convencê a outra a num fazê nada disso, mas num fiquei pra
ouvi o resto. Dei o fora bem rápido, vô te contá.
“Saí e desci correno o morro, e eu
esperava roubá um bote na praia num lugá fora da cidade, mas tinha
gente já de pé e por isso me escondi na veia oficina do tanoeiro,
toda em ruína, ali na ribanceira, pra esperá todo mundo ir
s’embora. Bem, eu fiquei lá a noite toda. Tinha alguém por ali o
tempo todo. Pelas cinco da manhã, começam a passá os bote, e pelas
oito ou nove todo bote que passava tava falano que o seu pai veio pra
cidade e disse que ocê tava morto. Os últimos bote tava cheio de
dama e cavaiero indo vê o lugá. Às veiz eles parava na praia e
descansava antes de começá a travessia, e pelas conversa fiquei
sabeno tudo do assassinato. Eu tava muito triste que mataram ocê,
Huck, mas agora num tô mais.
“Fiquei escondido o dia inteiro. Tava
com fome, mas num tava com medo, porque sabia que a veia dama e a
viúva iam saí pra reunião de reza no campo logo depois do café da
manhã e iam ficá fora o dia todo, e elas sabe que eu saio com o
gado com a luz da manhã, por isso elas num esperava me vê por ali,
e por isso elas num iam senti a minha farta inté dispois do escuro
da noite. Os outro criado num iam senti farta de mim, porque eles
logo saía e fazia feriado assim que as veia disaparecia.
“Bom, quando ficou escuro, eu saí pela
estrada do rio e andei uns três quilômetro ou mais, inté onde num
tinha mais casa. Tinha resolvido o que é que eu ia fazê. Entende,
se eu tentasse fugi a pé, os cachorro me seguia; se eu roubasse um
bote pra travessá o rio, eles dava por farta do bote, entende, e
eles sabia onde é que eu tinha desembarcado no outro lado e onde
achá o meu rastro. Assim digo, uma balsa é o que eu procuro, num
deixa rastro.
“Vejo uma luz vino de perto da ponta,
daí a pouco. Então entro na água e avanço com muito esforço e
empurro uma tora na minha frente, e nado quase inté metade do rio, e
me meto no meio dos tronco carregado pela corrente, sempre com a
cabeça baixada, e meio que nado contra a corrente inté aparecê uma
balsa. Então nadei pra popa dela e peguei a balsa. As núvis fecharo
e ficô bem escuro por um tempo. Subi na balsa e me deitei nas
prancha. Os hômi tava muito longe no meio do rio, onde tava a
lanterna. O rio tava subino e tinha uma boa corrente, então maginei
que pelas quatro da manhã eu já ia tê descido quarenta quilômetro
pelo rio, e qu’então eu escorregava pra dentro d’água, poco
antes da luz do dia, e nadava inté a terra e entrava na mata no lado
de Illinois.
“Mas num tive sorte. Quando tava quase
na ponta da ilha, um hômi começa a chegá por trás com a lanterna.
Vejo que num diantava esperá, então escorreguei pra água, e
comecei a nadá pra ilha. Bem, tinha ideia que podia entrá em
qualquer parte, mas num podia – barranco muito escarpado. Eu já
tava quase na outra ponta da ilha quando encontrei um bom lugá.
Entrei na mata e pensei que num ia mais brincá cum balsa, si elas
ficava moveno a lanterna. Eu tinha meu cachimbo e uma barra de fumo
ou fumo de corda, e uns fósforo no meu chapéu, e eles num tava
molhado, então eu tava bem.”
– Então ocê não teve nem carne nem
pão pra comer todo esse tempo? Por que não pegou uns cágados?
– Como é que eu ia pegá eles? Ocê
num pode chegá perto e pegá eles, e como é que eu ia batê neles
com uma pedra? Como é que eu ia fazê isso de noite? E eu num ia me
mostrá na margem durante o dia.
– É verdade. Ocê tinha que ficar na
mata todo o tempo, é claro. Ocê escutou eles disparando o canhão?
– Oh, sim. Sabia que eles tava atrás
de ocê. Vi eles passá por aqui, vi pelos arbusto.
Apareceram uns filhotes de pássaros,
voando um ou dois metros em fila e pousando. Jim disse que era sinal
que ia chover. Disse que era sinal de chuva quando os pintos voavam
desse jeito, e por isso ele achava que era a mesma coisa quando
filhotes de pássaros voavam e pousavam assim. Eu ia pegar uns deles,
mas Jim não me deixou. Disse que era morte. Disse que o pai dele
tava deitado muito doente certa vez, e eles pegaram um pássaro, e a
sua velha vó disse que o pai ia morrer, e ele morreu.
E Jim disse que a gente não deve contar
as coisas que a gente vai cozinhar pro jantar, porque isso dá azar.
Igual se a gente sacudia a toalha depois do anoitecer. E disse que,
se um homem tinha uma colmeia e esse homem morria, a gente tinha que
contar pras abelhas antes do sol levantar na manhã seguinte, senão
as abelhas ficavam fracas, abandonavam o trabalho e morriam. Jim
disse que as abelhas não picavam os idiotas, mas não acreditei
nisso, porque tinha tentado muitas vezes em mim mesmo, e elas não me
picavam.
Eu tinha escutado algumas dessas coisas
antes, mas não todas. Jim sabia todas essas coisas. Dizia que sabia
quase tudo. Eu disse que me parecia que todos os sinais eram de azar
e então perguntei se não tinha sinais de sorte. Ele disse:
– Muito pouco – e eles num tem
serventia pra ninguém. Pra quê ocê qué sabê quando vem a boa
sorte? Pra afastá a sorte? – E disse: – Si ocê tem braço e
peito peludo, é sinal que ocê vai sê rico. Ora, tem uma vantage
num sinal assim, porque tudo tá longe no futuro. Ocê vê, talveiz
ocê vai tê que sê pobre por muito tempo, e então ocê podia ficá
disanimado e se matá, se num sabe pelo sinal que vai sê rico mais
tarde.
– Ocê tem braços e peito peludo, Jim?
– Pra que fazê essa pregunta? Num tá
veno que tenho?
– Bem, ocê é rico?
– Não, já fui rico uma veiz e vô sê
rico de novo. Uma veiz eu tinha catorze dólar, mas comecei a
ispeculá e perdi tudo.
– Ocê especulou com o quê, Jim? –
Primeiro investi em gado.
– Que tipo de gado?
– Ora, criação de gado. Boi e vaca,
ocê sabe. Deiz dólar numa vaca. Mas num vô mais arriscá dinheiro
em gado. A vaca de repente morreu na minha mão.
– E ocê perdeu os dez dólares.
– Não, num perdi tudo. Só perdi uns
nove. Vendi o couro e o sebo por um dólar e deiz centavo.
– Você ficou com cinco dólares e dez
centavos. Especulou mais?
– Sim. Sabe aquele negro de uma perna
só que pertence ao veio sinhô Bradish? Ele montô um banco e diz
que todo mundo que deposita um dólar ganha mais quatro dólar no fim
do ano. Bem, todos os negro intraram nessa, mas eles num ganharam
muito. Eu fui o único que ganhô muito. Assim continuei a querê
mais que quatro dólar e disse que, se eu num ganhava, eu montava um
banco meu. Bem, craro que o negro me queria fora dos negócio, porque
ele diz que num tem bastante negócio pra dois banco, por isso ele
diz que eu podia depositá meus cinco dólar e ele me pagava trinta e
cinco no fim do ano.
“Foi o que eu fiz. Então maginei que
ia investi os trinta e cinco dólar já agora e mantê as coisa em
movimento. Tinha um negro de nome Bob, que tinha arrumado uma carreta
de transportá madeira, e o dono dele num sabia; e eu comprei a
carreta dele e disse pra ele pegá os trinta e cinco dólar no fim do
ano, mas alguém robô a carreta naquela noite e no dia seguinte o
negro de uma perna só diz que o banco quebrô. Então nenhum de nóis
ficô com dinheiro ninhum.”
– O que ocê fez com os dez centavos,
Jim?
– Bem, eu ia gastá os centavo, mas
tive um sonho, e o sonho me levô a dá os centavo prum negro de nome
Balum – Burro Balum chamavam ele pra encurtá o nome, ele é um
desses palhaço, ocê sabe. Mas ele tem sorte, dizem, e eu vejo que
eu num tenho sorte. O sonho diz pra deixá Balum investir os deiz
centavo que ele aumentava o dinheiro pra mim. Balum ele pegô o
dinheiro e, quano tava na igreja, ele escuta o pastô dizê que
aquele que dá pros pobre empresta ao Sinhô, e vai ganhá o dinheiro
dele de volta cem veiz mais. Então Balum ele pega e dá os deiz
centavo pros pobre, e dispois se escondeu pra vê o que que ia
acontecê.
– Bem, e o que aconteceu, Jim?
– Nada, num aconteceu nada. Num
consegui juntá o dinheiro de jeito nenhum, e Balum ele num
conseguiu. Num vô emprestá mais dinheiro sem segurança. Vai ganhá
o seu dinheiro de volta cem veiz mais, diz o pastô! Se eu ganhava os
dez centavo de volta, eu dizia tá tudo certo e ficava contente que
eu tava cum sorte.
– Tá tudo bem, de qualquer jeito, Jim.
Ocê diz que vai ficar rico de novo mais cedo ou mais tarde.
– Sim... e tô rico agora, se penso
nisso. Sô dono de mim, e o meu valô é oitocentos dólar. Queria
era tê todo esse dinheiro, num queria nada mais.
Mark Twain, in As Aventuras de
Huckleberry Finn
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