segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Capítulo 8: Dormindo na mata – Levantando os mortos – Explorando a ilha – Encontrando Jim – A fuga de Jim – Balum

O sol tava tão alto quando acordei que achei que era depois das oito. Fiquei deitado na grama e na sombra fresca pensando sobre as coisas, me sentindo descansado e bastante confortável e satisfeito. Podia ver o sol saindo de um ou dois buracos, mas no geral tinha árvores grandes por toda parte e sombra entre elas. Tinha lugares pontilhados no chão onde a luz filtrava pelas folhas, e os lugares salpicados se mexiam um pouco, mostrando que tinha uma brisa lá no alto. Dois esquilos se empinaram nas patas de trás e conversaram comigo muito amigos.
Eu tava com uma baita preguiça e muito bem acomodado – não queria me levantar e fazer o café da manhã. Bem, tava cochilando de novo, quando tenho a impressão de ouvir um som surdo de “bum!” bem longe rio acima. Desperto, me apoio no cotovelo e escuto; logo depois ouço de novo. Levantei pulando e fui olhar por um buraco nas folhas, vejo muita fumaça sobre a água muito longe rio acima – quase em frente da barca. E a barca cheia de gente descia flutuando. Já sabia qual era o problema. “Bum!” vejo a fumaça branca jorrar do lado da barca. Sabe, eles tavam disparando o canhão na água, tentando trazer minha carcaça pra tona.
Tava com muita fome, mas não ia dar pra acender um fogo, porque eles podiam ver a fumaça. Então me sentei ali e fiquei observando a fumaça do canhão e escutando a explosão. O rio tinha um quilômetro e meio de largura naquele ponto e sempre parece bonito numa manhã de verão – assim eu tava me divertindo bastante vendo eles à caça dos meus restos, só que queria ter pelo menos alguma coisa pra comer. Acontece que pensei que eles sempre colocam mercúrio em pedaços de pão e jogam os pães na água, porque eles vão direto até a carcaça do afogado e ali param. Então eu disse, vou ficar à espreita e, se um desses pedaços passar flutuando à minha procura, vou dar uma chance dele me encontrar. Fui pro lado de Illinois pra ver se tinha sorte e não fiquei desapontado. Apareceu um grande pão duplo, e eu quase peguei ele, com uma vara bem longa, mas meu pé escorregou e ele se soltou e saiu flutuando. É claro que eu tava onde a corrente chegava mais perto da margem – eu sabia muito bem onde ficar. Mas daí a pouco aparece outro pão, e desta vez consegui pegar. Arranquei o tampão e sacudi pra tirar o pouquinho de mercúrio, depois enfiei os dentes no pão. Era “pão de padaria” – o que a gente fina come – bem diferente daquela broa de milho sórdida.
Arrumei um bom lugar entre as folhas e sentei ali numa tora, mastigando o pão e observando a barca, muito satisfeito. E então pensei numa coisa. Imagino que a viúva ou o pároco ou alguém rezou pra esse pão me encontrar, e ele veio e me encontrou. Assim não tem dúvida que existe alguma coisa nessa história. Quero dizer, existe alguma coisa quando alguém como a viúva ou o pároco reza, mas não vai funcionar pra mim, e imagino que só funciona pro tipo certo de gente.
Acendi o cachimbo e pitei com gosto e devagar, e continuei a observar. A barca tava flutuando com a corrente, e achei que tinha uma chance de ver quem tava a bordo quando ela se aproximasse, porque ela ia passar bem perto, por ali onde o pão passou. Quando já tava bem avançada na minha direção, apaguei o cachimbo e fui até onde pesquei o pão e me deitei atrás de um tronco sobre a margem num pequeno espaço aberto. Ali onde o tronco se dividia, eu podia espiar.
Daí a pouco ela aparece, e a corrente vinha empurrando a barca pra tão perto que eles podiam colocar pra fora uma prancha e descer na praia. Quase todo mundo tava no barco. Papai, o juiz Thatcher, Bessie Thatcher, Jo Harper, Tom Sawyer, sua velha tia Polly, Sid e Mary e muitos mais. Todo mundo falava do assassinato, mas o capitão interrompeu e disse:
Prestem bem atenção agora. A corrente chega no ponto mais próximo da terra aqui, e talvez ele tenha sido arrastado pra praia e ficado emaranhado na moita da beira da água. Assim espero, pelo menos.
Eu é que não esperava. Eles todos se juntaram e inclinaram o corpo sobre a amurada, quase na minha cara, e ficaram em silêncio, observando com todas as suas forças. Eu podia ver eles muito bem, mas eles não podiam me ver. Então o capitão gritou:
Afastem-se! – e o canhão disparou um explosivo bem na minha frente, tão forte que me deixou surdo com o barulho e quase cego com a fumaça, e achei que tava perdido. Se tivessem atirado umas balas junto, acho que iam conseguir o cadáver que tavam procurando. Bem, vejo que não me machuquei, graças a Deus. O barco continuou a flutuar e saiu da vista ao redor da curva da ilha. Eu escutava as explosões, de vez em quando, cada vez mais longe, e daí a pouco, depois de uma hora, não escutava mais nada. A ilha tinha quase cinco quilômetros de comprimento. Achei que eles tinham chegado na outra ponta e que tavam desistindo. Mas eles inda não desistiram por algum tempo. Viraram ao redor da outra ponta da ilha e começaram a subir o canal no lado do Missouri, movidos a vapor, e disparando os canhões de vez em quando pelo caminho. Cruzei a ilha e passei pro outro lado pra observar eles subindo. Quando chegaram bem na frente da ponta da ilha, pararam de atirar, desembarcaram na costa do Missouri e foram pra casa na cidade.
Eu sabia que tava tudo certo agora. Mais ninguém vinha me caçar. Tirei meus tarecos da canoa e arrumei um belo acampamento bem no meio da mata. Armei uma espécie de tenda com os cobertores pra colocar as minhas coisas, pois assim a chuva não podia molhar nada. Pesquei um bagre e retalhei o peixe com a minha serra, e perto do anoitecer acendi uma fogueira e jantei. Depois estendi uma linha pra pegar uns peixes pro café da manhã.
Quando já tava escuro, fiquei sentado ao lado da fogueira fumando e me sentindo bem satisfeito, mas daí a pouco me senti meio solitário, então fui sentar na margem do rio e escutei as correntes passando e carregando tudo, e contei as estrelas e os troncos à deriva e as toras unidas em balsas que desciam, e depois fui dormir. Não tem melhor maneira de passar o tempo quando a gente se sente só, porque não dá pra continuar se sentindo assim, logo a gente acaba com a tristeza.
E assim foi por três dias e noites. Nada diferente – sempre a mesma coisa. Mas no dia seguinte fui explorar a mata na ilha. Eu era o dono da ilha; tudo pertencia a mim, vamos dizer, e eu queria conhecer tudo sobre a ilha, mas acima de tudo eu queria matar tempo. Encontrei muitos morangos, maduros e excelentes; e uvas verdes e framboesas verdes; e as amoras verdes mal tavam começando a aparecer. Todas iam estar maduras pra ser colhidas daí a pouco, pensei.
Bem, andei sem rumo por dentro da mata até que achei que não tava longe da outra ponta da ilha. Eu tinha a minha espingarda, mas não tinha matado nada, era pra proteção. Pensei em pegar uma caça mais perto de casa. A essa altura quase... quase pisei numa cobra de bom tamanho, e ela saiu escorregando pela grama e pelas flores, e eu atrás tentando dar um tiro nela. Continuei rápido e de repente dei um pulo pra trás bem diante das cinzas de uma fogueira que ainda tava fumegando.
O meu coração pulou entre os pulmões. Não esperei pra ver muito mais, travei a espingarda e voltei furtivo na ponta dos pés o mais rápido que pude. De vez em quando parava um segundo, entre as folhas espessas, e escutava, mas a minha respiração tava tão forte que não eu conseguia ouvir mais nada. Escapuli sorrateiro por mais um pedaço, depois prestei atenção de novo; e assim por diante, e assim por diante; se vejo um cepo, penso que é um homem; se piso num galho e ele quebrou, é como se alguém tivesse cortado o meu sopro em dois e eu só ficasse com metade, e ainda por cima com a metade pequena.
Quando cheguei no acampamento, eu não tava me sentindo destemido, me restava pouca coragem, mas disse pra mim mesmo, não é hora de brincadeira. Então peguei toda a minha tralha e levei pra canoa de novo pra não ficar à vista, e apaguei o fogo e espalhei as cinzas ao redor pra parecer um velho acampamento do ano passado, e aí subi numa árvore.
Acho que fiquei lá em cima da árvore umas duas horas, mas não vi nada, não ouvi nada – só achei que ouvi e vi umas mil coisas. Bem, eu não podia ficar lá em cima pra sempre, então acabei descendo, mas continuei na mata cerrada e alerta o tempo todo. Pra comer só consegui frutinhas e o que tinha sobrado do café da manhã.
Quando deu a noite, eu tava com bastante fome. Então quando ficou bem escuro, deslizei pra fora da margem antes da lua aparecer e remei até a margem de Illinois – uns quatrocentos metros. Entrei na mata e preparei meu jantar, e já tava quase decidido a ficar ali a noite toda quando ouço um plankiti-plank, plankiti-plank, e eu disse pra mim mesmo, cavalos chegando, e em seguida ouvi vozes de gente. Carreguei tudo pra canoa o mais rápido que pude e depois segui me arrastando pela mata pra ver o que podia descobrir. Não tinha andado muito quando ouço um homem dizer:
Melhor acampar por aqui, se encontrarmos um bom lugar, os cavalos tão quase estropiados. Vamos dar uma olhada ao redor.
Não esperei mais, empurrei a canoa pra água e remei sem dificuldade pra bem longe. Amarrei o bote no lugar de antes e pensei em dormir na canoa.
Não dormi muito. Não tinha jeito de conseguir, por causa dos pensamentos. E, toda vez que acordava, achava que alguém tinha me agarrado pelo cangote. Então o sono não me fez bem. Daí a pouco digo pra mim mesmo, não posso viver deste jeito; vou tratar de descobrir quem tá aqui na ilha comigo; é descobrir ou me rebentar. Bem, no mesmo minuto me senti melhor.
Então peguei meu remo e deslizei pra longe da margem só um pouco e então deixei a canoa deslizar entre as sombras. A lua tava brilhando, e fora das sombras tinha quase tanta luz que nem de dia. Fiquei uma boa hora espiando, tudo parado como pedras e em sono profundo. Bem, a essa altura eu tava quase na outra ponta da ilha. Uma brisa fria e assoviante começou a soprar, e isso era um bom sinal, a noite tava quase no fim. Viro a canoa com o remo e embico pra margem; depois peguei minha espingarda, escorreguei pra fora e entrei na beira da mata. Sentei num tronco e olhei pelo meio das folhas. Vejo a lua abandonar seu posto, e a escuridão começar a cobrir o rio. Mas em pouco tempo enxergo uma risca fraca sobre o topo das árvores e sabia que o dia tava chegando. Então peguei a espingarda e saí de mansinho pra aquele lugar da fogueira de acampamento que tinha achado, parando a cada minuto ou dois pra escutar. Mas só que não tive sorte, não conseguia encontrar o lugar. Mas logo, logo, com toda certeza, vi um vislumbre de fogo, bem longe entre as árvores. Fui pra lá, cuidando e bem devagar. Em pouco tempo já tava bem perto pra dar uma olhada e vi que tinha um homem deitado no chão. Quase me deu uns tremeliques. Ele tava com um cobertor enrolado na cabeça, e a cabeça tava quase na fogueira. Sentei ali atrás de uma moita, quase a dois metros de distância, e não despregava os olhos dele. Agora já tava cinzento com a luz do dia. Logo depois ele bocejou, espreguiçou, levantou o cobertor, e era o Jim da srta. Watson! Fiquei realmente contente de ver Jim. Eu disse:
Alô, Jim! – e pulei aparecendo.
Ele levantou com um salto e me fitou como um louco. Depois cai de joelhos, junta as mãos e diz:
Num me faz mal – não! Nunca fiz mal prum fantasma. Sempre gostei dos morto e fiz tudo que podia pra eles. Ocê vai entrá no rio de novo, que é o seu lugá, e num faiz nada pro veio Jim, que sempre foi seu amigo.
Bem, não levei muito tempo fazendo ele entender que eu não tava morto. Eu tava muito contente de ver Jim. Não tava mais sozinho. Disse a ele que não tava com medo dele contar pras pessoas onde é que eu andava. Continuei a falar, mas ele só ficou sentado ali me olhando, não dizia nada. Então eu falei:
Já é dia. Vamos buscar um café da manhã. Acende bem a fogueira do teu acampamento.
Que adianta acendê um fogo pra cozinhá morango e esses troço? Mas ocê tem uma espingarda, num tem? Então a gente pode consegui uma coisa mió que morango.
Morango e esses troços – digo eu. – É disso que ocê tá vivendo?
Num consegui otra coisa – diz ele.
Ora, desde quando ocê tá na ilha, Jim?
Cheguei aqui uma noite dispois que mataram ocê.
O quê, todo esse tempo?
Sim... tudo isso.
E ocê não tinha nada pra comer, só esse lixo?
Num, sinhô... nada mais.
Bem, ocê tá quase morto de fome, não?
Acho que eu podia cumê um cavalo. Podia. Quanto tempo ocê tá na ilha?
Desde a noite que me mataram.
Não! Ora, do que que ocê viveu? Mas ocê tinha uma espingarda? Oh, sim, ocê tinha uma espingarda. Isso é bom. Agora ocê mata uma coisa e eu vô fazê o fogo.
Então a gente foi pra onde tava a canoa, e enquanto ele fazia um fogo num lugar aberto cheio de grama entre as árvores, busquei farinha, toicinho e café, e cafeteira e frigideira, e açúcar e xícaras de lata, e o preto ficou bastante confuso, porque ele achava que tudo aparecia por feitiçaria. Peguei também um bagre bem grande, e Jim limpou o peixe com a sua faca e fritou.
Quando o café da manhã tava pronto, a gente se recostou na grama e comeu tudo quente e fumegante. Jim atacou o peixe com toda força, porque tava quase morto de fome. Depois, quando a gente já tava de barriga bem cheia, a gente ficou quietinho e cheio de preguiça.
Daí a pouco Jim diz:
Mas me diz uma coisa, Huck, quem é que foi morto naquela choça, se num foi ocê?
Então contei pra ele toda a história, e ele disse que era legal. Disse que Tom Sawyer não ia conseguir traçar um plano melhor que o meu. Então eu perguntei:
Como é que ocê tá aqui, Jim? E como é que ocê chegou até aqui?
Ele ficou muito arisco e não disse nada por um minuto. Aí disse:
Talveiz é mió num dizê.
Por quê, Jim?
Bem, tenho meus motivo. Mas ocê num vai falar de mim, se eu te contá, vai, Huck?
O diabo me carregue se eu falar, Jim.
Credito n’ocê, Huck. Eu... eu fugi.
Jim!
Cuidado, ocê disse que num contava! Ocê sabe que ocê disse que num ia contá, Huck.
Tá bem. Eu disse que não ia contar e vou manter a palavra. Palavra de índio honesto. As pessoas vão me chamar de abolicionista sórdido e vão me desprezar por ficar calado – mas não faz mal. Não vou contar e de todo jeito não vou voltar pra lá. Então me conta o que aconteceu.
Ocê vê, era sempre assim. A veia dama – a srta. Watson – ela me xinga o tempo todo, e me trata mal, mas ela sempre dizia que num me vendia pra Orleans. Mas eu vi que tinha um traficante de negro rondano bastante o lugá nos últimos tempo e comecei a ficá com medo. Uma noite eu me arrasto inté a porta, bem tarde, e a porta num tava bem fechada, e escuto a veia dama contá pra viúva que ela vai me vendê pra Orleans, ela num queria, mas ela podia consegui oitocentos dólar por mim, e era uma pilha tão grande de dinheiro que ela num podia resisti. A viúva ela tenta convencê a outra a num fazê nada disso, mas num fiquei pra ouvi o resto. Dei o fora bem rápido, vô te contá.
Saí e desci correno o morro, e eu esperava roubá um bote na praia num lugá fora da cidade, mas tinha gente já de pé e por isso me escondi na veia oficina do tanoeiro, toda em ruína, ali na ribanceira, pra esperá todo mundo ir s’embora. Bem, eu fiquei lá a noite toda. Tinha alguém por ali o tempo todo. Pelas cinco da manhã, começam a passá os bote, e pelas oito ou nove todo bote que passava tava falano que o seu pai veio pra cidade e disse que ocê tava morto. Os últimos bote tava cheio de dama e cavaiero indo vê o lugá. Às veiz eles parava na praia e descansava antes de começá a travessia, e pelas conversa fiquei sabeno tudo do assassinato. Eu tava muito triste que mataram ocê, Huck, mas agora num tô mais.
Fiquei escondido o dia inteiro. Tava com fome, mas num tava com medo, porque sabia que a veia dama e a viúva iam saí pra reunião de reza no campo logo depois do café da manhã e iam ficá fora o dia todo, e elas sabe que eu saio com o gado com a luz da manhã, por isso elas num esperava me vê por ali, e por isso elas num iam senti a minha farta inté dispois do escuro da noite. Os outro criado num iam senti farta de mim, porque eles logo saía e fazia feriado assim que as veia disaparecia.
Bom, quando ficou escuro, eu saí pela estrada do rio e andei uns três quilômetro ou mais, inté onde num tinha mais casa. Tinha resolvido o que é que eu ia fazê. Entende, se eu tentasse fugi a pé, os cachorro me seguia; se eu roubasse um bote pra travessá o rio, eles dava por farta do bote, entende, e eles sabia onde é que eu tinha desembarcado no outro lado e onde achá o meu rastro. Assim digo, uma balsa é o que eu procuro, num deixa rastro.
Vejo uma luz vino de perto da ponta, daí a pouco. Então entro na água e avanço com muito esforço e empurro uma tora na minha frente, e nado quase inté metade do rio, e me meto no meio dos tronco carregado pela corrente, sempre com a cabeça baixada, e meio que nado contra a corrente inté aparecê uma balsa. Então nadei pra popa dela e peguei a balsa. As núvis fecharo e ficô bem escuro por um tempo. Subi na balsa e me deitei nas prancha. Os hômi tava muito longe no meio do rio, onde tava a lanterna. O rio tava subino e tinha uma boa corrente, então maginei que pelas quatro da manhã eu já ia tê descido quarenta quilômetro pelo rio, e qu’então eu escorregava pra dentro d’água, poco antes da luz do dia, e nadava inté a terra e entrava na mata no lado de Illinois.
Mas num tive sorte. Quando tava quase na ponta da ilha, um hômi começa a chegá por trás com a lanterna. Vejo que num diantava esperá, então escorreguei pra água, e comecei a nadá pra ilha. Bem, tinha ideia que podia entrá em qualquer parte, mas num podia – barranco muito escarpado. Eu já tava quase na outra ponta da ilha quando encontrei um bom lugá. Entrei na mata e pensei que num ia mais brincá cum balsa, si elas ficava moveno a lanterna. Eu tinha meu cachimbo e uma barra de fumo ou fumo de corda, e uns fósforo no meu chapéu, e eles num tava molhado, então eu tava bem.”
Então ocê não teve nem carne nem pão pra comer todo esse tempo? Por que não pegou uns cágados?
Como é que eu ia pegá eles? Ocê num pode chegá perto e pegá eles, e como é que eu ia batê neles com uma pedra? Como é que eu ia fazê isso de noite? E eu num ia me mostrá na margem durante o dia.
É verdade. Ocê tinha que ficar na mata todo o tempo, é claro. Ocê escutou eles disparando o canhão?
Oh, sim. Sabia que eles tava atrás de ocê. Vi eles passá por aqui, vi pelos arbusto.
Apareceram uns filhotes de pássaros, voando um ou dois metros em fila e pousando. Jim disse que era sinal que ia chover. Disse que era sinal de chuva quando os pintos voavam desse jeito, e por isso ele achava que era a mesma coisa quando filhotes de pássaros voavam e pousavam assim. Eu ia pegar uns deles, mas Jim não me deixou. Disse que era morte. Disse que o pai dele tava deitado muito doente certa vez, e eles pegaram um pássaro, e a sua velha vó disse que o pai ia morrer, e ele morreu.
E Jim disse que a gente não deve contar as coisas que a gente vai cozinhar pro jantar, porque isso dá azar. Igual se a gente sacudia a toalha depois do anoitecer. E disse que, se um homem tinha uma colmeia e esse homem morria, a gente tinha que contar pras abelhas antes do sol levantar na manhã seguinte, senão as abelhas ficavam fracas, abandonavam o trabalho e morriam. Jim disse que as abelhas não picavam os idiotas, mas não acreditei nisso, porque tinha tentado muitas vezes em mim mesmo, e elas não me picavam.
Eu tinha escutado algumas dessas coisas antes, mas não todas. Jim sabia todas essas coisas. Dizia que sabia quase tudo. Eu disse que me parecia que todos os sinais eram de azar e então perguntei se não tinha sinais de sorte. Ele disse:
Muito pouco – e eles num tem serventia pra ninguém. Pra quê ocê qué sabê quando vem a boa sorte? Pra afastá a sorte? – E disse: – Si ocê tem braço e peito peludo, é sinal que ocê vai sê rico. Ora, tem uma vantage num sinal assim, porque tudo tá longe no futuro. Ocê vê, talveiz ocê vai tê que sê pobre por muito tempo, e então ocê podia ficá disanimado e se matá, se num sabe pelo sinal que vai sê rico mais tarde.
Ocê tem braços e peito peludo, Jim?
Pra que fazê essa pregunta? Num tá veno que tenho?
Bem, ocê é rico?
Não, já fui rico uma veiz e vô sê rico de novo. Uma veiz eu tinha catorze dólar, mas comecei a ispeculá e perdi tudo.
Ocê especulou com o quê, Jim? – Primeiro investi em gado.
Que tipo de gado?
Ora, criação de gado. Boi e vaca, ocê sabe. Deiz dólar numa vaca. Mas num vô mais arriscá dinheiro em gado. A vaca de repente morreu na minha mão.
E ocê perdeu os dez dólares.
Não, num perdi tudo. Só perdi uns nove. Vendi o couro e o sebo por um dólar e deiz centavo.
Você ficou com cinco dólares e dez centavos. Especulou mais?
Sim. Sabe aquele negro de uma perna só que pertence ao veio sinhô Bradish? Ele montô um banco e diz que todo mundo que deposita um dólar ganha mais quatro dólar no fim do ano. Bem, todos os negro intraram nessa, mas eles num ganharam muito. Eu fui o único que ganhô muito. Assim continuei a querê mais que quatro dólar e disse que, se eu num ganhava, eu montava um banco meu. Bem, craro que o negro me queria fora dos negócio, porque ele diz que num tem bastante negócio pra dois banco, por isso ele diz que eu podia depositá meus cinco dólar e ele me pagava trinta e cinco no fim do ano.
Foi o que eu fiz. Então maginei que ia investi os trinta e cinco dólar já agora e mantê as coisa em movimento. Tinha um negro de nome Bob, que tinha arrumado uma carreta de transportá madeira, e o dono dele num sabia; e eu comprei a carreta dele e disse pra ele pegá os trinta e cinco dólar no fim do ano, mas alguém robô a carreta naquela noite e no dia seguinte o negro de uma perna só diz que o banco quebrô. Então nenhum de nóis ficô com dinheiro ninhum.”
O que ocê fez com os dez centavos, Jim?
Bem, eu ia gastá os centavo, mas tive um sonho, e o sonho me levô a dá os centavo prum negro de nome Balum – Burro Balum chamavam ele pra encurtá o nome, ele é um desses palhaço, ocê sabe. Mas ele tem sorte, dizem, e eu vejo que eu num tenho sorte. O sonho diz pra deixá Balum investir os deiz centavo que ele aumentava o dinheiro pra mim. Balum ele pegô o dinheiro e, quano tava na igreja, ele escuta o pastô dizê que aquele que dá pros pobre empresta ao Sinhô, e vai ganhá o dinheiro dele de volta cem veiz mais. Então Balum ele pega e dá os deiz centavo pros pobre, e dispois se escondeu pra vê o que que ia acontecê.
Bem, e o que aconteceu, Jim?
Nada, num aconteceu nada. Num consegui juntá o dinheiro de jeito nenhum, e Balum ele num conseguiu. Num vô emprestá mais dinheiro sem segurança. Vai ganhá o seu dinheiro de volta cem veiz mais, diz o pastô! Se eu ganhava os dez centavo de volta, eu dizia tá tudo certo e ficava contente que eu tava cum sorte.
Tá tudo bem, de qualquer jeito, Jim. Ocê diz que vai ficar rico de novo mais cedo ou mais tarde.
Sim... e tô rico agora, se penso nisso. Sô dono de mim, e o meu valô é oitocentos dólar. Queria era tê todo esse dinheiro, num queria nada mais.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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