sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Capítulo 7: À espreita – Trancado na cabana – Preparativos para a partida – Afundando o corpo – Bolando um plano – Descansando

Levanta! Tá fazendo o quê?
Abri os olhos e olhei ao redor, tentando descobrir onde é que eu tava. Era depois do amanhecer, e eu tinha dormido como uma pedra. Papai tava de pé bem acima de mim, parecendo azedo – e doente também. Perguntou:
O que tá fazendo com essa espingarda?
Achei que ele não sabia nada do que tinha feito, então falei:
Alguém tentou entrar, por isso eu tava de olho.
Por que não me acordô?
Bem, eu tentei, mas não consegui. Não conseguia mover ocê.
Hum, tudo bem. Nada de ficar aí tagarelando o dia inteiro, trata de sair e ver se tem algum peixe nas linha pro café da manhã. Vô já já com ocê.
Ele destrancou a porta, então eu escapuli e subi pela margem do rio. Vi uns pedaços de galhos e outras coisas flutuando rio abaixo, e algumas cascas de árvores, por isso eu sabia que o rio tinha começado a subir. Imaginei tudo o que eu ia me divertir agora, se tivesse na cidade. A cheia de junho sempre trazia sorte pra mim, porque assim que começa essa cheia aparece flutuando madeira cortada pra lenha e toras atadas como balsas – às vezes umas doze toras todas juntas. Assim, só o que precisa fazer é apanhar as madeiras e vender nos depósitos de corte de madeiras e na serraria.
Andei pela margem com um olho à procura do papai e o outro à espreita do que a cheia podia trazer. De repente, aparece uma canoa, uma beleza, com uns quatro metros de comprimento, deslizando rápido como um pato. Me atirei de cabeça ali da margem, como um sapo, com roupa e tudo, e saí atrás da canoa. Esperava que tivesse alguém deitado dentro dela, porque as pessoas muitas vezes faziam isso pra enganar a gente e, quando um cara puxava o bote bem pra perto de si, elas levantavam e riam dele. Mas não foi assim dessa vez. Era uma canoa à deriva, com certeza, e eu pulei pra dentro dela e remei até a margem. Pensei, o velho vai gostar quando avistar o bote – vale uns dez dólares. Mas, quando cheguei na margem, papai inda não tava à vista, e como eu tava fazendo a canoa correr por uma pequena enseada que parecia um rego profundo, todo coberto de trepadeiras e salgueiros, tive outra ideia: pensei em esconder bem a canoa e depois, em vez de sair pra mata na hora da fuga, descer o rio uns oitenta quilômetros e acampar num só lugar pra sempre, sem o sacrifício de andar a pé.
Eu tava bem perto da cabana e o tempo todo imaginava que tava escutando o velho vindo, mas consegui esconder a canoa e depois saí e olhei por trás de um grupo de salgueiros, e lá tava o velho, mais abaixo no caminho, fazendo pontaria num passarinho com a espingarda. Ele não tinha visto nada.
Quando chegou perto, eu tava concentrado em puxar uma linha de espinel. Ele ralhou um pouco por eu ser tão lento, mas eu respondi que caí no rio e que foi isso que me atrasou. Eu sabia que ele ia ver que eu tava molhado, então ia começar a fazer perguntas. Pegamos cinco bagres das linhas e fomos pra casa.
Depois de comer, deitados pra cochilar, nós dois exaustos, comecei a pensar que, se eu desse um jeito de não deixar o papai e a viúva me seguirem, isso ia ser mais seguro que confiar na sorte de poder ir pra bem longe antes de eles sentirem a minha falta. Sabe, todos os tipos de coisas podiam acontecer. Bem, eu não via jeito nenhum por ora, mas dali a pouco papai levantou um minuto pra beber mais um monte d’água e ele disse:
Outra vez que um homem rondar por aqui ocê me acorda, entende? Esse homem num tava aqui por nada. Eu ia atirar nele. Na próxima vez ocê me acorda, viu?
Então ele caiu duro e voltou a dormir – mas o que tinha dito me deu a ideia que eu queria. Digo pra mim mesmo: agora posso dar um jeito pra ninguém pensar em me seguir.
Pelo meio-dia a gente saiu e caminhou pela margem. O rio tava subindo bem rápido, muitas madeiras boiando passavam com a cheia. Dali a pouco, aparece parte de uma balsa de toras – nove toras amarradas uma na outra. Pegamos o bote e rebocamos as toras pra margem. Aí almoçamos. Qualquer outro ia esperar todo o dia, pra pegar mais coisas no rio, mas esse não era o jeito do papai. Nove toras já tavam mais que bom, ele tinha que empurrar a madeira até a cidade e vender. Então ele me trancou na cabana pegou o bote e partiu rebocando a balsa lá pelas três e meia. Achei que não ia voltar naquela noite. Esperei até achar que ele tinha se afastado bastante, tirei a serra do esconderijo e comecei a trabalhar naquela tora de novo. Antes dele chegar no outro lado do rio, eu já tava pra fora do buraco; ele e a balsa eram só uma mancha na água bem longe.
Peguei o saco de grãos e levei pra onde a canoa tava escondida, afastei as trepadeiras e os ramos e coloquei o saco na canoa. Depois fiz o mesmo com o pedaço de toicinho e mais o jarro de uísque. Peguei todo o café e açúcar que tinha por ali, e toda a munição, peguei a bucha de espingarda, peguei o balde e a cuia, peguei uma caneca e uma xícara de latão, mais a minha velha serra e dois cobertores, e a caçarola e a cafeteira. Peguei linha de pescar, fósforo e outras coisas – tudo o que valia um tostão. Limpei o lugar. Eu queria um machado, mas não tinha nenhum, só aquele lá fora na pilha de lenha, e eu sabia por que ia deixar esse ali mesmo. Peguei a espingarda e então eu tava pronto.
Gastei muito o chão, rastejando pra fora do buraco e arrastando tantas coisas. Arrumei tudo o melhor que pude ali fora espalhando poeira no lugar, poeira que cobriu o solo alisado e a serragem. Aí coloquei o pedaço de tora de volta no lugar, e duas pedras embaixo e uma contra a tora pra manter ela no lugar, porque tava vergada naquele ponto e não chegava bem até o chão. Se alguém parasse mais ou menos a um metro e meio e não soubesse que a tora tava serrada, nunca ia notar; e, além disso, eram os fundos da cabana, pouco provável que alguém fosse perder tempo por ali.
Como era só grama até a canoa, eu não deixei rastro nenhum. Segui por ali pra ver. Parei na margem e olhei pro outro lado do rio. Tudo sem perigo. Então peguei a espingarda e entrei um pouco na mata; tava caçando uns pássaros quando vejo um porco selvagem. Os porcos logo viravam selvagens naquelas matas densas depois que escapavam das fazendas da pradaria. Matei o sujeito com um tiro e carreguei ele pro acampamento.
Peguei o machado e estraçalhei a porta. Bati e golpeei bastante aprontando isso. Puxei o porco pra dentro, arrastei ele quase até a mesa e dei uns golpes de machado na sua garganta, e deixei ele ali na terra pra sangrar; digo terra porque era terra – dura, batida, e não madeira no chão. Bem, então peguei um saco velho e meti muitas pedras grandes nele – todas que pude arrastar – e comecei a puxar desde onde tava o porco, e arrastei até a porta e pela mata até o rio e joguei lá dentro, e o saco foi bem pro fundo, desapareceu da vista. Era fácil ver que alguma coisa tinha sido arrastada pelo terreno. Queria que Tom Sawyer tivesse ali; sabia que ele se interessava por coisas desse tipo e que ia dar aqui e ali uns toques fantásticos. Ninguém era mais minucioso que Tom Sawyer num caso como esse.
Bem, por fim arranquei um pouco do meu cabelo, molhei o machado com bastante sangue, enfiei o cabelo na parte detrás e atirei o machado num canto. Depois levantei o porco e apertei ele contra meu peito com a ajuda do casaco (pra não pingar) até chegar bem longe da casa, e então joguei ele no rio. Aí pensei noutra coisa. Fui pegar na canoa o saco de farinha e a minha velha serra, e levei as duas coisas pra casa. Levei o saco pra onde costumava ficar e rasguei um buraco no fundo com a serra, pois não tinha facas e garfos no lugar – papai fazia tudo com sua faca de mola na hora de cozinhar. Aí carreguei o saco uns cem metros pela grama e pelos salgueiros a leste da casa, até um lago raso que tinha oito quilômetros de largura e tava cheio de junco – e de patos também, dava pra dizer, naquela estação. Tinha um lamaçal ou um riacho saindo dele no outro lado e seguindo quilômetros pra bem longe, não sei até onde, mas não entrava no rio. A farinha caía fina do saco e criou uma pequena trilha no caminho todo até o lago. Também deixei cair ali a pedra de amolar de papai, pra dar a impressão que tudo era obra do acaso. Aí amarrei o rasgão no saco de farinha com uma corda, pra não deixar cair mais farinha, e levei o saco e a minha serra pra canoa de novo.
Já tava quase escuro, então soltei a canoa no rio embaixo de uns salgueiros que caíam sobre a margem e esperei a lua nascer. Amarrei a canoa num salgueiro, peguei um naco de comida e aos pouquinhos me deitei na canoa pra fumar o cachimbo e traçar um plano. Digo pra mim mesmo, eles vão seguir a trilha daquele saco cheio de pedras até a margem e depois dragar o rio procurando por mim. E vão seguir aquela trilha de farinha e dar uma olhada no riacho que sai do lago pra encontrar os assaltantes que me mataram e que pegaram as coisas. Não vão vasculhar o rio atrás de outra coisa, só pela minha carcaça morta. Vão ficar logo cansados e parar de se preocupar comigo. Tudo bem, posso parar onde eu quiser. Jackson’s Island é um bom lugar pra mim; conheço essa ilha bastante bem, e ninguém jamais anda por lá. E além do mais posso remar até a cidade de noite, andar sorrateiro por lá e pegar as coisas que quero. Jackson’s Island é o lugar.
Tava bem cansado e, quando dei por mim, já tava dormindo. Quando acordei, por um minuto não sabia onde é que tava. Levantei o corpo e olhei ao redor, um pouco assustado. Aí me lembrei. O rio parecia ter quilômetros e quilômetros de largura. A lua tava tão brilhante que eu podia contar as toras à deriva que passavam deslizando, negras e silenciosas a centenas de metros da margem. Tudo tava parado, parecia tarde, e cheirava a tarde. Você sabe o que quero dizer – não sei que palavra usar.
Dei um bom bocejo e me espreguicei; tava começando a desamarrar a canoa pra partir quando escutei um som longe sobre a água. Prestei atenção. Logo descobri o que era. Era aquele som monótono e regular que vem de remos batendo nos toletes quando a noite tá quieta. Espiei pelos ramos dos salgueiros e lá tava ele – um bote distante na água. Não podia ver quanta gente tava dentro. Continuava vindo e, quando chegou na minha frente, vejo que tinha só um homem dentro. Pensei, pode ser o papai, só que eu não tava esperando ele. Desceu mais pra baixo de mim com a corrente, e dali a pouco veio balançando pra perto da margem na água sossegada, e passou tão junto que eu podia estender a espingarda e tocar nele. Bem, era o papai, sem dúvida – e sóbrio também, pelo jeito como deitava os remos.
Não perdi tempo. No minuto seguinte tava deslizando corrente abaixo, macio mas rápido na sombra da ribanceira. Segui uns quatro quilômetros e depois comecei a me deslocar uns quatrocentos metros ou mais na direção do meio do rio, porque logo ia passar pelo desembarcadouro das barcas, e as pessoas podiam me ver e gritar pra mim. Saí entre a madeira flutuante e então me deitei no fundo da canoa e deixei ela flutuar. Fiquei por ali, e descansei bem e fumei o meu cachimbo, olhando pra longe no céu, nenhuma nuvem à vista. O céu parece sempre muito profundo quando a gente tá deitado de costas embaixo do luar, eu não sabia disso antes. E como a gente consegue ouvir longe sobre a água nessas noites! Escutei pessoas conversando no desembarcadouro. Escutei também o que diziam – todas as suas palavras. Um homem dizia que agora tavam chegando os dias longos e as noites curtas. O outro dizia que esta não era uma das curtas, pelos seus cálculos – e então eles riram, e ele repetiu o que tinha dito, e eles riram de novo. Depois acordaram outro sujeito e falaram a mesma coisa pra ele e riram, mas ele não riu; esbravejou algo ríspido e disse que era para deixar ele em paz. O primeiro cara disse que pensava em contar pra sua velha mulher – ela ia achar a frase muito boa, mas ele disse que não era nada perto de algumas coisas que tinha dito no seu tempo. Escutei um homem dizer que eram quase três horas e que ele esperava que a luz do sol não fosse demorar mais muito tempo. Depois disso a conversa ficou cada vez mais longe, e eu não conseguia distinguir as palavras, mas continuava a escutar o murmúrio, e de vez em quando também um riso, mas parecia muito distante.
Eu já tinha deixado a barca bem pra trás. Levantei, e lá tava Jackson’s Island, a uns quatro quilômetros correnteza abaixo, cheia de madeiras e aparecendo no meio do rio, grande, escura e sólida, como um barco a vapor sem luzes. Não tinha sinais da barra na ponta – tava toda embaixo da água.
Não levei muito tempo pra chegar lá. Passei pela ponta num ritmo violento, a corrente tava muito rápida, e depois entrei na água parada e encostei na margem virada para o lado de Illinois. Fiz a canoa entrar numa cavidade funda que eu conhecia na margem; tive que afastar os ramos dos salgueiros pra entrar e, quando amarrei tudo bem firme, ninguém podia ver a canoa lá de fora.
Subi e me sentei numa tora na ponta da ilha, e ali fiquei olhando pro grande rio, pras madeiras flutuando negras, e pra cidade bem longe, a cinco quilômetros de distância, onde tinha três ou quatro luzes piscando. Uma balsa de madeiras monstruosa de tão grande tava um quilômetro e meio rio acima, descendo com uma lanterna no meio dela. Fiquei vendo ela deslizar calada e, quando tava quase na frente de onde me achava, escutei um homem dizer: “Levantar remos, aí! Virem a proa pra estibordo!”. Escutei tão claro como se o homem tivesse do meu lado.
Já tinha um pouco de cinza no céu, então entrei na mata e me deitei pra tirar um cochilo antes do café da manhã.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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