sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A vida na Idade Média

A imagem que temos da Idade Média, talvez mais do que a de qualquer outro período, foi falsificada para se encaixar em nossos preconceitos. Às vezes essa imagem nos tem parecido negra demais, às vezes rosada demais. O século XVIII, que não tinha dúvidas a respeito de si mesmo, considerava a época medieval como meramente bárbara: para Gibbon, os homens daquele tempo seriam nossos “ancestrais abrutalhados”. A reação contra a Revolução Francesa produziu a admiração romântica do absurdo, baseada na experiência de que a razão conduzia à guilhotina. Isso engendrou a glorificação da suposta “época do cavalheirismo”, popularizada entre os povos de língua inglesa por Sir Walter Scott. A menina e o menino, em geral, são provavelmente até hoje dominados pela visão da Idade Média: imaginam um período em que cavaleiros usavam armadura, carregavam lanças, diziam coisas como “quotha” e “by my halidom” e, invariavelmente, eram corteses ou coléricos; quando todas as donzelas eram lindas e viviam em perigo, mas que com certeza seriam salvas no final da história. Existe ainda uma terceira visão, bem diferente, mas que, como a segunda, admira a Idade Média: trata-se da visão eclesiástica, engendrada pela aversão à Reforma. A ênfase aqui é dada à piedade, à ortodoxia, à filosofia escolástica e à unificação da cristandade pela Igreja. Assim como a visão romântica, trata-se de uma reação contrária à razão, mas uma reação menos ingênua, disfarçando-se nas formas da razão, recorrendo a um grande sistema de pensamento que já dominou o mundo e que poderá vir a dominá-lo novamente.
Em todas essas visões existem elementos de verdade: a Idade Média foi brutal, foi cavalheiresca, foi piedosa. Mas, se desejamos enxergar um período verdadeiramente, não devemos olhar para ele em contraste com o nosso próprio período, seja para obter vantagem ou desvantagem: precisamos vê-lo tal como era para quem vivia nele. Acima de tudo, precisamos nos lembrar de que, em todos os períodos históricos, a maior parte das pessoas é formada por gente comum, preocupada com o pão de cada dia, e não com os grandes temas de que tratam os historiadores. Tais mortais comuns são retratados por Miss Eileen Power em um livro delicioso, Medieval People, que abrange desde o período de Carlos Magno até o de Henrique VII. A única pessoa de destaque em sua galeria é Marco Polo; as outras cinco são indivíduos mais ou menos obscuros, cuja vida é reconstruída por meio de documentos que por acaso sobreviveram. O cavalheirismo, que era um assunto aristocrático, não aparece nesses anais democráticos; a piedade é demonstrada por camponeses e mercadores britânicos, mas existe com bem menos evidência nos círculos eclesiásticos – e todo mundo é muito menos bárbaro do que o século XVIII poderia supor. Existe, no entanto, a favor da visão “bárbara”, um contraste muito notável entre a arte veneziana logo antes do Renascimento e a arte chinesa no século XIV. Dois quadros são reproduzidos: um, uma ilustração veneziana do embarque de Marco Polo; o outro, uma paisagem chinesa do século XIV pintada por Chao Meng-fu. Miss Power diz: “Uma [a de Chao Meng-fu] é, muito obviamente, obra de uma civilização altamente desenvolvida, enquanto a outra, de um povo quase ingênuo e infantil”. Ninguém que compare as duas imagens poderá deixar de concordar.
Outro livro recente, The Waning of the Middle Ages, do professor Huizinfa de Leiden, pinta um retrato extraordinariamente interessante dos séculos XIV e XV na França e em Flandres. Nesse livro, o cavalheirismo recebe sua quota justa de atenção, não do ponto de vista romântico, mas como um jogo elaborado que as classes altas inventaram para enganar o intolerável tédio da vida. Uma parte essencial do cavalheirismo era a concepção curiosa do amor cortesão, como algo que era agradável deixar insatisfeito. “Quando, no século XII, o desejo insatisfeito foi posto pelos trovadores da Provença no centro da concepção poética do amor, uma reviravolta importante na história da civilização foi levada a efeito. A poesia cortesã (...) faz do desejo em si o seu motivo essencial e, assim, cria uma concepção de amor com uma nota de base negativa.” E ainda:

A existência de uma classe superior, cujas noções intelectuais e morais são cultuadas em uma ars amandi, permanece como um fato bastante excepcional na história. Em nenhuma outra época o ideal de civilização foi amalgamado em tal grau àquele relativo ao amor. Da mesma maneira como o escolasticismo representa o maior esforço do espírito medieval para unir todo o pensamento filosófico em um único centro, a teoria do amor cortesão, em esfera menos elevada, tem a tendência de abarcar tudo aquilo que pertence à vida nobre.

Grande parte da Idade Média pode ser interpretada como um conflito entre as tradições romana e germânica: de um lado, a Igreja; do outro, o Estado; de um lado, a teologia e a filosofia; do outro, o cavalheirismo e a poesia; de um lado, a lei; do outro, o prazer, a paixão e todos os impulsos anárquicos de homens muito obstinados. A tradição romana não era aquela dos grandes dias de Roma, era a de Constantino e Justiniano; mas, mesmo assim, continha algo de que as nações em turbulência necessitavam, e sem o que a civilização não poderia ter ressurgido da Idade das Trevas. Como os homens eram impetuosos, só poderiam ser dominados por severidade terrível: o terror foi empregado até perder o efeito, devido à sua familiaridade. Depois de descrever a Dança da Morte, um dos temas preferidos da arte do final do período medieval, na qual esqueletos dançam com homens vivos, o dr. Huizinga prossegue e fala sobre o Cemitério dos Inocentes, em Paris, onde os contemporâneos de Villon passeavam em busca de prazer:

Crânios e ossos empilhavam-se em capelas mortuárias, ao longo dos claustros, delimitando o terreno por três lados, e lá jaziam expostos aos olhos de milhares, pregando a todos a lição da igualdade. (...) Sob os claustros, a dança da morte exibia suas imagens e suas estrofes. Nenhum lugar era mais adequado à figura símia da morte sorridente, arrastando consigo papas e imperadores, monges e tolos. O duque de Berry, que desejava ser enterrado ali, mandou entalhar a história dos três mortos e dos três vivos no portal da igreja. Um século depois, essa exposição de símbolos fúnebres foi completada por uma grande estátua da Morte, agora no Louvre, e é a única coisa que restou de tudo isso. Tal era o lugar que os parisienses do século XV frequentavam como uma lúgubre contraparte do Palais Royal de 1789. Dia após dia, multidões de pessoas caminhavam por sob os claustros, olhando para as figuras e lendo os versos simples que as lembravam do fim que se aproximava. Apesar dos enterros e das exumações incessantes que ali ocorriam, era um local de descanso e de encontro público. Lojas foram abertas em frente às capelas mortuárias, e prostitutas passeavam sob os claustros. Uma mulher reclusa foi emparedada em um dos lados da igreja. Frades iam até ali para rezar, e procissões eram atraídas até lá. (...) Até mesmo banquetes se realizavam. Tal era o grau em que o horrível havia se tornado familiar.

Como se poderia esperar dessa adoração do macabro, a crueldade era um dos prazeres mais valorizados pelo populacho. A cidade belga de Mons comprou um salteador, com o intuito único de fazer com que fosse torturado, “ao que o povo regozijou mais do que se tivesse visto um novo corpo santo erguer-se dos mortos”. Em 1488, alguns dos magistrados de Bruges, suspeitos de traição, foram torturados repetidamente na praça do mercado, para o deleite do povo. Imploraram para ser mortos, mas a dádiva lhes foi negada, segundo dr. Huizinga, “para que o povo pudesse se refestelar com seus tormentos”.
Talvez, afinal de contas, haja algo a ser dito a respeito da visão do século XVIII.
O dr. Huizinga tem alguns capítulos muito interessantes a respeito da arte do final da Idade Média. O refinamento da pintura não encontrava equivalência nem na arquitetura, nem na escultura, que se tornaram rebuscadas devido à adoração de tudo que é magnífico, aliado à pompa feudal. Por exemplo, quando o duque da Borgonha contratou Sluter para elaborar o detalhado “A Cartuxa de Champmol”, o escudo de armas da Borgonha e de Flandres apareceram no escudo de armas da cruz. O que é ainda mais surpreendente é a figura de Jeremias, que fazia parte do grupo, tinha um par de óculos sobre o nariz! O autor delineia uma imagem patética de um grande artista controlado por um patrão filisteu e, então, encarrega-se de destruí-la ao sugerir que talvez “o próprio Sluter considerasse os óculos de Jeremias uma descoberta muito feliz”. Miss Power menciona um fato igualmente surpreendente: no século XIII, Bowdler, um expurgador italiano, superando Tennyson em refinamento vitoriano, publicou uma versão da lenda do Rei Arthur que omitia todas as referências aos amores de Lancelote e Guinevere. A História está cheia de coisas bizarras, a exemplo do caso de um jesuíta japonês que foi martirizado em Moscou no século XVI. Gostaria que algum historiador erudito escrevesse um livro chamado “fatos que me surpreenderam”. Em um livro como esse, os óculos de Jeremias e o expurgador italiano com certeza teriam seu lugar.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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