segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A pressa dominou-os todos

Fotograma do filme "As vinhas da ira"

Os adultos foram andando em direção à cozinha iluminada, na escuridão cada vez maior do crepúsculo, e a mãe serviu-lhes carne e verduras em pratos de estanho. Mas antes que ela mesma comesse, colocou sobre o fogão a grande bacia de água, para esquentá-la. Carregou baldes e mais baldes de água, até encher a bacia, e colocou baldes cheios de água em volta dela. E meteu mais lenha no fogão, para dar vida às chamas. A cozinha não tardou a ficar quente e cheia de vapor de água, e a família toda comeu com pressa. Depois saiu para o terreiro, onde ficou esperando que a água fervesse. Olhavam todos a escuridão, e no meio do quadrilátero de luz que a cozinha iluminada projetava para fora via-se a sombra da figura recurvada do avô. Noah limpava os dentes com uma palha. A mãe e Rosa de Sharon lavavam os pratos e empilhavam-nos sobre a mesa.
De repente, lançaram-se todos à atividade. O pai trouxe e acendeu outra lamparina. Noah, de um caixote que estava na cozinha, apanhou a faca curva e aguçada usada para as matanças, começando a afiá-la numa pedra de amolar gasta e pequena. E colocou a raspadeira sobre o cepo e pôs a faca ao seu lado. O pai trouxe duas estacas grossas, cada uma das quais com mais de um metro de comprimento, afiou-lhes as extremidades com a machadinha e amarrou-os uns aos outros, pelo centro, com cordas resistentes.
Começou a resmungar:
A gente não devia ter vendido todas as estacas do varal.
A água na panela estava fervendo e borbulhando.
Noah perguntou:
Vamo trazer os porcos pra cá, ou levamo a água pra lá?
Trazer os porcos pra cá — disse o pai. — Aqui a gente pode escaldar eles melhor. A água tá pronta?
Tá no ponto — disse a mãe.
Bom, Noah, ocê e o Tom vêm comigo. O Al também. Eu levo a lamparina. Vamos matar eles lá e trazer depois pra cá.
Noah pegou a faca e Al pegou a machadinha, e os quatro homens caminharam em direção ao chiqueiro; a lamparina iluminava-lhes fracamente as pernas. Ruthie e Winfield corriam e saltavam por perto. À porta do chiqueiro, o pai debruçou-se sobre a cerca segurando a lamparina. Os porcos sonolentos ergueram-se com esforço e grunhiram desconfiados. Tio John e o reverendo Casy também vinham chegando, dispostos a ajudar.
Bem, vamo a eles — disse o pai. — A gente mata eles aqui e deixa escorrer o sangue e depois leva eles pra escaldar em casa.

Noah e Tom saltaram a cerca. Fizeram o serviço com rapidez e eficiência. Tom desferiu dois golpes com o gume rombudo da machadinha e Noah, debruçando-se sobre os animais atordoados, sangrou-os, rasgando-lhes a veia com a faca curva e deixando que o sangue escorresse em liberdade. Depois arrastaram os dois porcos, que guinchavam assustadoramente, para fora, erguendo-os sobre a cerca. O pregador e tio John puxaram um dos porcos pelas pernas traseiras e Tom e Noah puxaram o outro da mesma maneira. O pai iluminava o caminho com a lanterna, e o sangue negro traçou duas grossas linhas na poeira.
Em casa, Noah enfiou sua faca entre o tendão e os ossos das pernas traseiras; as varas afiadas serviram para mantê-las bem afastadas uma da outra, e pouco depois os porcos estavam dependurados nos caibros, do lado de fora da casa. Depois os homens trouxeram da cozinha a panela de água fervente e despejaram-na sobre os corpos enegrecidos. Noah lhes abriu as barrigas de ponta a ponta e tirou as entranhas, deixando-as cair no chão. O pai apontou mais duas varas para manter os corpos bem abertos, enquanto Tom, com a raspadeira, e a mãe, com uma faca sem ponta, raspavam-lhe os pelos. Al trouxe um balde e juntou nele as entranhas dos dois porcos e jogou-as fora no mato, longe da casa. Dois gatos seguiram-no miando, e os cães também o seguiram, mas seu rosnado era inaudível por causa dos gatos.
O pai, sentado nos degraus da porta, olhava os porcos dependurados no terreiro, à luz da lamparina. A raspagem já tinha terminado, e apenas algumas gotas de sangue continuavam a cair das carcaças na poça negra que se formara no chão. O pai ergueu-se, foi até os porcos e pôs neles suas mãos, para ver como estavam; tornou logo a sentar-se no mesmo lugar. O avô e a avó foram ao celeiro dormir, e o avô carregava uma vela na mão. Os restantes quedaram-se em silêncio ao redor da porta, Connie, Al e Tom no chão, encostando-se à parede da casa, tio John sentado num caixote e o pai no limiar da porta. Somente a mãe e Rosa de Sharon ainda andavam atarefadas. Ruthie e Winfield lutavam contra o sono. Noah e o reverendo acocoraram-se lado a lado, em frente à casa. O pai coçava-se nervosamente; tirou o chapéu e correu os dedos pelos cabelos.
Amanhã bem cedo vamo tratar de salgar a carne de porco, e depois vamo carregar o caminhão, só deixamo de fora as camas, e depois de amanhã partimos, hein? Com um dia de trabalho se faz tudo — disse excitado.
Tom interveio:
Vamo ficar então o dia todo sem fazer nada... — O grupo todo agitava-se inquieto. — A gente podia terminar tudo até de madrugada e ir logo andando — acrescentou Tom. O pai esfregou o joelho com a mão. A inquietude envolveu-os a todos.
Noah disse:
Talvez a carne não estrague se a gente salgar ela logo duma vez. É só cortar ela pra esfriar mais depressa.
Afinal, foi tio John, incapaz de se conter, quem aproveitou a oportunidade:
Que é que nós queremos, afinal, aqui? Vam’bora duma vez acabar com isso! A gente tem que ir mesmo, não tem? Então vamos mais depressa possível!
E os outros aceitaram a proposta revolucionária.
É, por que não vamos? Dormir, a gente dorme no caminho. — E um sentimento de pressa dominou-os.
O pai disse:
O pessoal diz que são três mil quilômetros. É uma caminhada longa como o diabo. É, a gente tem que ir. Noah, ocê e eu podemo cortar a carne, e depois botamos os troços no caminhão.
A mãe enfiou a cabeça porta afora:
E se a gente esquecer alguma coisa? Não se vê nada nessa escuridão.
Quando amanhecer a gente pode verificar tudo — disse Noah.
Então ficaram todos silenciosos, pensando nisso. Mas num instante Noah ergueu-se e começou a amolar a faca curva na pedra gasta.
Mãe — falou ele —, limpa a mesa.
E foi a um dos porcos, rasgou-lhe as costas, junto da espinha, de ponta a ponta, e separou a carne das costelas.
O pai levantou-se excitado:
Temos que arrumar as coisas — falou. — Vamo, pessoal.
Agora que estavam decididos a partir, a pressa dominou-os todos. Noah carregou os pedaços de carne até a cozinha e cortou-os para salgá-los. A mãe untou-os de sal e colocou-os, lado a lado, nas barricas, tomando cuidado para que os pedaços não se tocassem. Dispô-los como tijolos e encheu os espaços que os separavam de sal. E então Noah cortou a carne dos lados e as pernas. A mãe alimentou o fogo do fogão e à medida que Noah ia tirando as carnes das costelas e os ossos das pernas o máximo que podia, ela ia colocando esses ossos para assar, para que roessem os pedaços de carne que ainda estavam presos.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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