quinta-feira, 26 de julho de 2018

Sobrevivemos à morte?

Este texto foi publicado pela primeira vez em 1936, em um livro intitulado The Mysteries of Life and Death [Mistérios da Vida e da Morte]. O artigo de Bishop Barnes a que Russell se refere fazia parte da mesma obra. 
 
Antes de podermos discutir produtivamente a possibilidade de continuarmos existindo após a morte, é bom deixar claro que estou falando no sentido de um homem ser a mesma pessoa que era ontem. Os filósofos costumavam pensar que existiam substâncias definidas, a alma e o corpo, e que ambas tinham duração de dia a dia; que a alma, uma vez criada, continuava a existir ao longo de todo o tempo futuro, ao passo que o corpo deixava de existir temporariamente da morte até a ressurreição do corpo.
A parte dessa doutrina que diz respeito à vida presente com muita certeza é falsa. A matéria do corpo modifica-se continuamente, por meio dos processos de nutrição e evacuação. Mesmo que não se modificasse dessa forma, já não se acredita, em física, que os átomos tenham existência contínua; não há o menor sentido em dizer: este é o mesmo átomo que existia há alguns minutos. A continuidade do corpo humano é questão de aparência e comportamento, não de substância.
O mesmo se aplica à mente. Pensamos, sentimos e agimos, mas não existe, além dos pensamentos, sentimentos e ações, uma simples entidade, a mente ou a alma, que produza ou sofra essas ocorrências. A continuidade mental de uma pessoa é uma continuidade de hábito e memória: ontem existia uma pessoa de cujos sentimentos posso me lembrar, e essa pessoa vejo como o eu mesmo de ontem; mas, na verdade, o eu mesmo de ontem era apenas umas tantas ocorrências mentais que agora são lembradas, vistas como parte das pessoas que se recordam delas. Tudo o que constitui uma pessoa é uma série de experiências conectadas pela memória e por certas similaridades do tipo que chamamos hábito.
Se, no entanto, devemos acreditar que uma pessoa sobrevive à morte, precisamos acreditar que as lembranças e os hábitos que constituem a pessoa continuarão a ser exibidos em um conjunto novo de ocorrências.
Ninguém pode provar que isso não acontecerá. Mas é fácil ver que é muito improvável. Nossas lembranças e hábitos estão ligados à estrutura do cérebro, de maneira bastante parecida com a que um rio está ligado ao seu leito. A água do rio sempre muda, mas ele mantém o mesmo curso porque chuvas anteriores formaram um canal. De maneira semelhante, acontecimentos anteriores formaram um canal no cérebro, e nossos pensamentos fluem por esse canal. Essa é a causa da memória e dos hábitos mentais. Mas o cérebro, como estrutura, dissolve-se com a morte, e pode-se esperar, portanto, que a memória também se dissolva. Da mesma maneira que um rio não continuará seguindo seu curso de sempre após um terremoto erguer uma montanha onde antes havia um vale, não existe razão para pensar que possa acontecer outra coisa com as lembranças.
Todas as lembranças, e portanto (pode-se dizer) todas as mentes, dependem de uma propriedade que é muito perceptível em certos tipos de estruturas materiais, mas que existe pouco, se é que existe, em outros tipos. Trata-se da propriedade de formar hábitos como resultado de ocorrências frequentes e similares. Por exemplo, uma luz forte faz as pupilas dos olhos se contraírem; se fizermos incidir a luz de uma lanterna sobre os olhos de um homem ao mesmo tempo que um gongo toca, o gongo sozinho, no final, fará com que suas pupilas se contraiam. Esse é um fato relativo ao cérebro e ao sistema nervoso, quer dizer, a uma estrutura material específica. Descobrir-se-á que fatos exatamente similares explicam nossa resposta à linguagem e o uso que fazemos dela, nossas memórias e as emoções que elas despertam, nossos hábitos de comportamento morais e imorais e, de fato, tudo o que constitui nossa personalidade mental, à exceção da parte determinada pela hereditariedade. A parte determinada pela hereditariedade é legada à nossa posteridade, mas não pode, no indivíduo, sobreviver à desintegração do corpo. Portanto, tanto a hereditariedade como as partes adquiridas da personalidade estão, no que diz respeito ao alcance da nossa experiência, ligadas às características de estruturas corporais específicas. Todos sabemos que a memória pode ser apagada por uma lesão no cérebro, que uma pessoa virtuosa pode se tornar corrupta por uma encefalite letárgica e que uma criança inteligente pode se transformar em uma idiota se não consumir iodo. Tendo em vista fatos assim tão conhecidos, parece bastante improvável que a mente sobreviva à destruição total das estruturas cerebrais que ocorre com a morte.
Não são argumentos racionais, mas sim emoções, que suscitam a crença na vida futura.
A mais importante dessas emoções é o medo da morte, que é instintivo e útil do ponto de vista biológico. Se acreditássemos na vida futura de maneira genuína e sincera, deixaríamos de sentir todo o medo que temos da morte. Os efeitos seriam curiosos, e provavelmente deploráveis para a maior parte de nós. Mas nossos ancestrais humanos e subumanos lutaram contra seus inimigos e os exterminaram através de muitas eras geológicas – e venceram pela coragem; é, portanto, uma vantagem dos vitoriosos na batalha pela vida serem capazes, de vez em quando, de superar o medo natural da morte. Entre animais e selvagens, a belicosidade instintiva basta para esse objetivo. Mas, em um determinado estágio de desenvolvimento, como os maometanos primeiro comprovaram, a crença no paraíso teve valor militar considerável, por despertar a belicosidade natural. Devemos, portanto, reconhecer que os militaristas são sábios ao incentivar a crença na imortalidade, sempre supondo que essa crença não se torne tão profunda a ponto de produzir indiferença em relação às questões do mundo.
Outra emoção que estimula a crença na sobrevivência é a admiração pela excelência do homem. Como diz o bispo de Birmingham: “Sua mente é um instrumento muito superior a qualquer coisa que tenha existido antes – ele sabe distinguir o certo do errado. É capaz de construir a abadia de Westminster. É capaz de fabricar um avião. Ele é capaz de calcular a distância do sol. (...) Será então que o homem, ao morrer, desaparece por completo? Será que aquele instrumento incomparável, seu espírito, desaparece quando a vida cessa?”.
O bispo segue em frente e argumenta que “o universo foi delineado e é governado por uma razão inteligente”, e que não seria nada inteligente, depois de ter criado o homem, permitir que ele desaparecesse.
Para esse argumento há muitas respostas. Em primeiro lugar, descobriu-se, com a investigação científica da natureza, que a intromissão dos valores estéticos ou morais sempre foi um obstáculo à descoberta. Costumava-se pensar que os corpos celestes deviam se mover em círculos, porque o círculo é a curva mais perfeita, que as espécies deviam ser imutáveis, porque Deus só criaria coisas perfeitas e aquilo que, portanto, não precisaria ser aperfeiçoado, que seria inútil combater epidemias, a não ser por meio do arrependimento, porque haviam sido enviadas como castigo pelo pecado, e assim por diante. Chegou-se à conclusão, no entanto, até onde é possível descobrir, que a natureza é indiferente aos nossos valores e que só pode ser compreendida se ignorarmos nossas noções de bem e de mal. O universo pode ter uma razão de ser, mas nada que sabemos sugere que, se assim for, essa razão tenha alguma similaridade com a nossa.
Também não há nada de surpreendente nisso. O dr. Barnes nos diz que o homem “sabe distinguir o certo do errado”. Mas, de fato, como a antropologia mostra, as visões que o homem tem a respeito do certo e do errado variaram a tal ponto que nenhum item em particular tornou-se permanente. Não podemos dizer, portanto, que o homem sabe distinguir o certo do errado, mas que apenas alguns homens sabem fazê-lo. Mas que homens? Nietzsche argumentou em favor de uma ética profundamente diferente da de Cristo, e alguns governos poderosos aceitaram seu ensinamento. Se o conhecimento do que é certo e do que é errado serve como argumento para a imortalidade, precisamos primeiro estabelecer se acreditamos em Cristo ou em Nietzsche e, então, argumentar que os cristãos são imortais, mas que Hitler e Mussolini não o são, e vice-versa. A decisão obviamente será tomada em campo de batalha, e não na sala de estudos. Os que tiverem o melhor gás venenoso possuirão a ética do futuro e, portanto, serão imortais.
Nossos sentimentos e crenças a respeito do bem e do mal são, assim como tudo o mais que nos diz respeito, fatos naturais, desenvolvidos na batalha pela existência, sem qualquer origem divina ou sobrenatural. Em uma das fábulas de Esopo, alguém mostra a um leão quadros de caçadores pegando leões, e o leão observa que, se ele os tivesse pintado, as telas mostrariam leões pegando caçadores. O homem, diz o dr. Barnes, é um sujeito ótimo porque sabe fabricar aviões. Pouco tempo atrás, havia uma canção popular a respeito da esperteza das moscas, que são capazes de andar pelo teto de ponta-cabeça, com o seguinte refrão: “Será que Lloyd George seria capaz de fazer isso? Será que o sr. Baldwin poderia fazer isso? Será que Ramsay Mac poderia fazer isso? Ah, claro que NÃO”. Com base nisso, um argumento muito revelador poderia ser construído por uma mosca com pensamento teológico, argumento que sem dúvida seria considerado muito convincente pelas outras moscas.
Além do mais, somente quando pensamos de maneira abstrata é que passamos a ter a humanidade em tão alta conta. A respeito dos homens, de maneira concreta, quase todos nós os consideramos, em sua grande maioria, muito ruins. Os países civilizados gastam mais da metade de sua receita matando os cidadãos alheios. Consideremos a longa história das atividades inspiradas pelo fervor moral: sacrifícios humanos, perseguições a hereges, caça às bruxas, massacres de judeus, levando ao extermínio em massa pelo uso de gases venenosos, algo a que pelo menos um dos colegas episcopais do dr. Barnes deve ser favorável, supostamente, já que para ele o pacifismo é contrário ao cristianismo. Será que essas abominações e as doutrinas éticas que as inspiram realmente evidenciam a existência de um Criador inteligente? E será que podemos mesmo desejar que os homens que as praticaram devam viver para sempre? O mundo em que vivemos pode ser compreendido como resultado de confusões e acidentes; mas, se for resultado de um objetivo deliberado, esse objetivo deve ter sido elaborado por alguém muito cruel. De minha parte, considero a hipótese do acidente menos dolorosa e mais plausível.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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