Este texto foi
publicado pela primeira vez em 1936, em um livro intitulado The
Mysteries of Life and Death [Mistérios da Vida e da Morte]. O artigo
de Bishop Barnes a que Russell se refere fazia parte da mesma obra.
Antes de podermos
discutir produtivamente a possibilidade de continuarmos existindo
após a morte, é bom deixar claro que estou falando no sentido de um
homem ser a mesma pessoa que era ontem. Os filósofos costumavam
pensar que existiam substâncias definidas, a alma e o corpo, e que
ambas tinham duração de dia a dia; que a alma, uma vez criada,
continuava a existir ao longo de todo o tempo futuro, ao passo que o
corpo deixava de existir temporariamente da morte até a ressurreição
do corpo.
A parte dessa
doutrina que diz respeito à vida presente com muita certeza é
falsa. A matéria do corpo modifica-se continuamente, por meio dos
processos de nutrição e evacuação. Mesmo que não se modificasse
dessa forma, já não se acredita, em física, que os átomos tenham
existência contínua; não há o menor sentido em dizer: este é o
mesmo átomo que existia há alguns minutos. A continuidade do corpo
humano é questão de aparência e comportamento, não de substância.
O mesmo se aplica à
mente. Pensamos, sentimos e agimos, mas não existe, além dos
pensamentos, sentimentos e ações, uma simples entidade, a mente ou
a alma, que produza ou sofra essas ocorrências. A continuidade
mental de uma pessoa é uma continuidade de hábito e memória: ontem
existia uma pessoa de cujos sentimentos posso me lembrar, e essa
pessoa vejo como o eu mesmo de ontem; mas, na verdade, o eu mesmo de
ontem era apenas umas tantas ocorrências mentais que agora são
lembradas, vistas como parte das pessoas que se recordam delas. Tudo
o que constitui uma pessoa é uma série de experiências conectadas
pela memória e por certas similaridades do tipo que chamamos hábito.
Se, no entanto,
devemos acreditar que uma pessoa sobrevive à morte, precisamos
acreditar que as lembranças e os hábitos que constituem a pessoa
continuarão a ser exibidos em um conjunto novo de ocorrências.
Ninguém pode
provar que isso não acontecerá. Mas é fácil ver que é muito
improvável. Nossas lembranças e hábitos estão ligados à
estrutura do cérebro, de maneira bastante parecida com a que um rio
está ligado ao seu leito. A água do rio sempre muda, mas ele mantém
o mesmo curso porque chuvas anteriores formaram um canal. De maneira
semelhante, acontecimentos anteriores formaram um canal no cérebro,
e nossos pensamentos fluem por esse canal. Essa é a causa da memória
e dos hábitos mentais. Mas o cérebro, como estrutura, dissolve-se
com a morte, e pode-se esperar, portanto, que a memória também se
dissolva. Da mesma maneira que um rio não continuará seguindo seu
curso de sempre após um terremoto erguer uma montanha onde antes
havia um vale, não existe razão para pensar que possa acontecer
outra coisa com as lembranças.
Todas as
lembranças, e portanto (pode-se dizer) todas as mentes, dependem de
uma propriedade que é muito perceptível em certos tipos de
estruturas materiais, mas que existe pouco, se é que existe, em
outros tipos. Trata-se da propriedade de formar hábitos como
resultado de ocorrências frequentes e similares. Por exemplo, uma
luz forte faz as pupilas dos olhos se contraírem; se fizermos
incidir a luz de uma lanterna sobre os olhos de um homem ao mesmo
tempo que um gongo toca, o gongo sozinho, no final, fará com que
suas pupilas se contraiam. Esse é um fato relativo ao cérebro e ao
sistema nervoso, quer dizer, a uma estrutura material específica.
Descobrir-se-á que fatos exatamente similares explicam nossa
resposta à linguagem e o uso que fazemos dela, nossas memórias e as
emoções que elas despertam, nossos hábitos de comportamento morais
e imorais e, de fato, tudo o que constitui nossa personalidade
mental, à exceção da parte determinada pela hereditariedade. A
parte determinada pela hereditariedade é legada à nossa
posteridade, mas não pode, no indivíduo, sobreviver à
desintegração do corpo. Portanto, tanto a hereditariedade como as
partes adquiridas da personalidade estão, no que diz respeito ao
alcance da nossa experiência, ligadas às características de
estruturas corporais específicas. Todos sabemos que a memória pode
ser apagada por uma lesão no cérebro, que uma pessoa virtuosa pode
se tornar corrupta por uma encefalite letárgica e que uma criança
inteligente pode se transformar em uma idiota se não consumir iodo.
Tendo em vista fatos assim tão conhecidos, parece bastante
improvável que a mente sobreviva à destruição total das
estruturas cerebrais que ocorre com a morte.
Não são
argumentos racionais, mas sim emoções, que suscitam a crença na
vida futura.
A mais importante
dessas emoções é o medo da morte, que é instintivo e útil do
ponto de vista biológico. Se acreditássemos na vida futura de
maneira genuína e sincera, deixaríamos de sentir todo o medo que
temos da morte. Os efeitos seriam curiosos, e provavelmente
deploráveis para a maior parte de nós. Mas nossos ancestrais
humanos e subumanos lutaram contra seus inimigos e os exterminaram
através de muitas eras geológicas – e venceram pela coragem; é,
portanto, uma vantagem dos vitoriosos na batalha pela vida serem
capazes, de vez em quando, de superar o medo natural da morte. Entre
animais e selvagens, a belicosidade instintiva basta para esse
objetivo. Mas, em um determinado estágio de desenvolvimento, como os
maometanos primeiro comprovaram, a crença no paraíso teve valor
militar considerável, por despertar a belicosidade natural. Devemos,
portanto, reconhecer que os militaristas são sábios ao incentivar a
crença na imortalidade, sempre supondo que essa crença não se
torne tão profunda a ponto de produzir indiferença em relação às
questões do mundo.
Outra emoção que
estimula a crença na sobrevivência é a admiração pela excelência
do homem. Como diz o bispo de Birmingham: “Sua mente é um
instrumento muito superior a qualquer coisa que tenha existido antes
– ele sabe distinguir o certo do errado. É capaz de construir a
abadia de Westminster. É capaz de fabricar um avião. Ele é capaz
de calcular a distância do sol. (...) Será então que o homem, ao
morrer, desaparece por completo? Será que aquele instrumento
incomparável, seu espírito, desaparece quando a vida cessa?”.
O bispo segue em
frente e argumenta que “o universo foi delineado e é governado por
uma razão inteligente”, e que não seria nada inteligente, depois
de ter criado o homem, permitir que ele desaparecesse.
Para esse argumento
há muitas respostas. Em primeiro lugar, descobriu-se, com a
investigação científica da natureza, que a intromissão dos
valores estéticos ou morais sempre foi um obstáculo à descoberta.
Costumava-se pensar que os corpos celestes deviam se mover em
círculos, porque o círculo é a curva mais perfeita, que as
espécies deviam ser imutáveis, porque Deus só criaria coisas
perfeitas e aquilo que, portanto, não precisaria ser aperfeiçoado,
que seria inútil combater epidemias, a não ser por meio do
arrependimento, porque haviam sido enviadas como castigo pelo pecado,
e assim por diante. Chegou-se à conclusão, no entanto, até onde é
possível descobrir, que a natureza é indiferente aos nossos valores
e que só pode ser compreendida se ignorarmos nossas noções de bem
e de mal. O universo pode ter uma razão de ser, mas nada que sabemos
sugere que, se assim for, essa razão tenha alguma similaridade com a
nossa.
Também não há
nada de surpreendente nisso. O dr. Barnes nos diz que o homem “sabe
distinguir o certo do errado”. Mas, de fato, como a antropologia
mostra, as visões que o homem tem a respeito do certo e do errado
variaram a tal ponto que nenhum item em particular tornou-se
permanente. Não podemos dizer, portanto, que o homem sabe distinguir
o certo do errado, mas que apenas alguns homens sabem fazê-lo. Mas
que homens? Nietzsche argumentou em favor de uma ética profundamente
diferente da de Cristo, e alguns governos poderosos aceitaram seu
ensinamento. Se o conhecimento do que é certo e do que é errado
serve como argumento para a imortalidade, precisamos primeiro
estabelecer se acreditamos em Cristo ou em Nietzsche e, então,
argumentar que os cristãos são imortais, mas que Hitler e Mussolini
não o são, e vice-versa. A decisão obviamente será tomada em
campo de batalha, e não na sala de estudos. Os que tiverem o melhor
gás venenoso possuirão a ética do futuro e, portanto, serão
imortais.
Nossos sentimentos
e crenças a respeito do bem e do mal são, assim como tudo o mais
que nos diz respeito, fatos naturais, desenvolvidos na batalha pela
existência, sem qualquer origem divina ou sobrenatural. Em uma das
fábulas de Esopo, alguém mostra a um leão quadros de caçadores
pegando leões, e o leão observa que, se ele os tivesse pintado, as
telas mostrariam leões pegando caçadores. O homem, diz o dr.
Barnes, é um sujeito ótimo porque sabe fabricar aviões. Pouco
tempo atrás, havia uma canção popular a respeito da esperteza das
moscas, que são capazes de andar pelo teto de ponta-cabeça, com o
seguinte refrão: “Será que Lloyd George seria capaz de fazer
isso? Será que o sr. Baldwin poderia fazer isso? Será que Ramsay
Mac poderia fazer isso? Ah, claro que NÃO”. Com base nisso, um
argumento muito revelador poderia ser construído por uma mosca com
pensamento teológico, argumento que sem dúvida seria considerado
muito convincente pelas outras moscas.
Além do mais,
somente quando pensamos de maneira abstrata é que passamos a ter a
humanidade em tão alta conta. A respeito dos homens, de maneira
concreta, quase todos nós os consideramos, em sua grande maioria,
muito ruins. Os países civilizados gastam mais da metade de sua
receita matando os cidadãos alheios. Consideremos a longa história
das atividades inspiradas pelo fervor moral: sacrifícios humanos,
perseguições a hereges, caça às bruxas, massacres de judeus,
levando ao extermínio em massa pelo uso de gases venenosos, algo a
que pelo menos um dos colegas episcopais do dr. Barnes deve ser
favorável, supostamente, já que para ele o pacifismo é contrário
ao cristianismo. Será que essas abominações e as doutrinas éticas
que as inspiram realmente evidenciam a existência de um Criador
inteligente? E será que podemos mesmo desejar que os homens que as
praticaram devam viver para sempre? O mundo em que vivemos pode ser
compreendido como resultado de confusões e acidentes; mas, se for
resultado de um objetivo deliberado, esse objetivo deve ter sido
elaborado por alguém muito cruel. De minha parte, considero a
hipótese do acidente menos dolorosa e mais plausível.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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