Como ele não tinha
nada o que fazer, foi fazer pipi. E depois ficou a zero mesmo.
Viver tem dessas
coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto.
Enquanto se vive.
Hoje me telefonou
uma moça chorando, dizendo que seu pai morrera. É assim: sem mais
nem menos.
Um dos meus filhos
está fora do Brasil, o outro veio almoçar comigo. A carne estava
tão dura que mal se podia mastigar. Mas bebemos um vinho rosé
gelado. E conversamos. Eu tinha pedido para ele não sucumbir à
imposição do comércio que explora o dia das mães. Ele fez o que
pedi: não me deu nada. Ou melhor me deu tudo: a sua presença.
Trabalhei o dia
inteiro, são dez para as seis. O telefone não toca. Estou sozinha.
Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone chama e
ninguém atende. Ou dizem: está dormindo.
A questão é saber
aguentar. Pois a coisa é assim mesmo. Às vezes não se tem nada a
fazer e então se faz pipi.
Mas se Deus nos fez
assim, que assim sejamos. De mãos abanando. Sem assunto.
Sexta-feira de
noite fui a uma festa, eu nem sabia que era o aniversário do meu
amigo, sua mulher não me dissera. Tinha muita gente. Notei que
muitas pessoas se sentiam pouco à vontade.
Que faço? telefono
a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei, uma vez já
liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está
dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer? Nada: porque
é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia
inteiro.
Mas agora quem
estava dormindo já acordou e vem me ver às oito horas. São seis e
cinco.
Estamos no chamado
“veranico de maio”: grande calor. Meus dedos doem de tanto eu
bater à máquina. Com a ponta dos dedos não se brinca. É pela
ponta dos dedos que se recebem os fluidos.
Eu devia ter me
oferecido para ir ao enterro do pai da moça? A morte seria hoje
demais para mim. Já sei o que vou fazer: vou comer. Depois eu volto.
Fui à cozinha, a cozinheira por acaso não está de folga e vai
esquentar comida para mim. Minha cozinheira é enorme de gorda: pesa
noventa quilos. Noventa quilos de insegurança, noventa quilos de
medo. Tenho vontade de beijar seu rosto preto e liso mas ela não
entenderia. Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida.
Descobri que estou morrendo de fome. Mal posso esperar que ela me
chame.
Ah, já sei o que
vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à
máquina. Até já.
Já comi. Estava
ótimo. Tomei um pouco de rosé. Agora vou tomar um café. E
refrigerar a sala: no Brasil ar-refrigerado não é um luxo, é uma
necessidade. Sobretudo para pessoa que, como eu, sofre demais com o
calor. São seis e meia. Liguei meu rádio de pilha. Para a
Ministério de Educação. Mas que música triste! não é preciso
ser triste para ser bem-educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom
Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua viola. Quero
alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente
começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E
eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas “por
enquanto”. São vinte para as sete. E para que é que são vinte
para as sete?
Nesse intervalo dei
um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca
na vida eu disse essa coisa de “para o meu gáudio”. É muito
esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em
Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não
tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me
lembro se li alguma vez.
Estou com saudade.
Saudade de meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu
não li todos os livros. La chair est triste.
Mas a gente fuma e
melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É
muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos
para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão
chato ver televisão sozinha.
Mas finalmente
resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes.
Clarice
Lispector, in Todos os contos
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