sábado, 14 de julho de 2018

O porco e seu espírito

Sem-vergonha... Mato!” — rugia o Migudonho, em ira com mais de três letras, devida a alambiques. Ele acordava cedo mais não entendia de orvalho; soprava para ajudar o vento; nem se entendia bem com a realidade pensante. E a invectiva ia ao Teixeirete — vizinho seu na limitada superfície terrestre — enquanto vinha a ameaça a um capado de ceva, que gordo abusava a matéria e negava-se a qualquer graça. Teixeirete aconselhara vender-se vivo o bicho? Visse, para aprender! Matava. Hoje. O dia lá era de se fazer Roma.
— “Sujo Se ingerir, atiro...” — e dava passo de recuo. Agora, ao contrário: ao vizinho, o desafiar; e o insulto ao porco, não menos roncante, total devorador, desenxurdando-se, a eliminar de si horrível fluido quase visível. Migudonho sobraçava tocha de palha para o chamusco, após sangração, a ponta de faca. — “Monstro!” — o que timbrava elogio; engordá-lo fora proeza. Teixeirete achava não valer aquilo o milho e a pena? — “Saf...” — aos gritos do apunhalado, que parecia ainda comer para lá da morte. Migudonho — o ato invadia-lhe o íntimo: suã, fressuras, focinheira, pernil, lombo. — “Quero ninguém!” Mas, não o Teixeirete: vinha era a filha dele, aparar o sangue, trazia já farinha e sal e temperos, na cuia. Xepeiros! Também em casa dele, Migudonho, não se comia morcela, chouriço-de-sangue, não somavam. Outros sobejos o Teixeirete não ia aproveitar, nem o que urubu há de ter! Do Migudonho — para o Migudonho. Porco morto de bom.
Crestava-o, raspando-o a sabugo. A machado, rachava-o. Despojara-o da barrigada. Cortava pedaço — xingando a mulher: que o picasse e fritasse! Ele respingava pressa. Tomava trago. Destrinchava. Aquela carne rosada, mesmo crua, abria gostoso exalar, dava alma. — “Cachorro!” Teixeirete se oferecera de levar a manta de toicinho à venda? Queria era se chegar, para manjar do alheio, de bambocheio. Tomava mais gole. Mastigava, boca de não caber, entendia era o porco, suas todas febras. — “Cambada...” — os que olhavam, de longe, não deixando paz a um no seu. Retalhava. Não arrotava. Grunhia à mulher: para cozinhar mais, assar do lombinho, naco, frigir com fubá um pezunho. Teixeirete que espiasse de lá, chuchando e aguando, orelhas para baixo. Migudonho era um Hércules. Arrotava. Para ele, o triunfal trabalho se acabasse jamais.
Ais. A barriga beliscou-o. O danado do porco — sua noção. A cobra de uma cólica. Suinão do cerdo. Vingança? Vê se porco sabe o que porca não sabe... — “Doi, dor!” — ele cuinchava, cuinhava. Queria comer, desatou a gemer. Ah, o tratante do Teixeirete: só eram só seus maus olhos... Migudonho cochinava. Já suava. Ele estava em consequência de flecha.
Fazendo o que, dentro do chiqueiro, atolado? Beber não adiantava. Migudonho, mover e puxar vômitos, pneumático opado o ventre, gases, feito se com o porco íntegro conteúdo. O borboroto, sem debelo. O porco fazia-se o sujeito, não o objeto da atual representação. A hora virou momento. Arre, ai, era um inocente pagando.
Acudiam-lhe, nesse entrecontratempo. Até o Teixeirete, aos saltos-furtados, o diabo dono de todas as folgas? — “Canastrão!” Teixeirete, não! Pregavam-lhe uma descompostura.
Mas Migudonho não era mais só Migudonho. Doíam, ele e o porco, tão unidos, inseparáveis, intratáveis. Não lhes valessem losna, repurga, emplastro quente no fígado. De melhorar nem de traspassar-se, a sedeca, aquela espatifação. Gemia, insultava-se por sílabas. Estava como noz na tenaz. Já pequenino atrás de sua opinião, manso como marido de madrasta.
Teixeirete, a filharada, a mulher, solertes samaritanos, em ágil, vizinha, alta caridade. Porca, gorda vida. Migudonho, com na barriga o outro, lobisomem, na cama chafurdado. — “Satanasado!”
Teixeirete, bel-prazeroso, livre de qualquer maçada. — “Coisa de extravagâncias...” — disse. Abancou-se. À cidade iria, por remédio, e levar o toucinho. — “Ora, tão certo...” — falava. Nada lhe oferecessem, do porco, comida nenhuma, os cheiros inteiros, as linguiças aprontadas! O canalha.
Melhor, sim, dessem-lhe. Para ele botassem prato cheio, de comer e repetir, o trestanto, dar ao dente... Ia ver, depois de atochado! Pegava também a indigestão. Saber o que é que o porco do Migudonho pode...
Ria o Migudonho, apalpando-se a eólia pança, com cuidado. Mais quitutes dessem ao Teixeirete, já, reenchessem-lhe o prato. Homem de bons engolimentos. — “Com torresmos...” Teixeirete — nhaco-te, nhaco-te, m’nhão... — não se recusava. E não adoecia e rebentava, o desgraçado?!
Arre, ai...” — a dor tornava. Esfaqueava-o o morto porco, com a faca mais navalha. Comido, não destruído, o porco interno sapecava-o. Deu tonítruo arroto. Pediu o vaso. Do porco não se desembaraçava. Volvo? — e podia morrer daquilo. Queria elixir paregórico, injeção, algum récipe de farmácia. Pois, que fosse, logo, o Teixeirete. Que era que ainda esperava? Deixasse de comer o dos outros, glutoar e refocilar-se. — “Descarado!...”
Ver o Teixeirete saindo, no bom cavalo, emprestado. Tomava também dinheiro! Sorrindo, lépido, sem poeira nem pena — um desgraçado! Migudonho virava-se para o canto, não merecia tanta infelicidade. — “Porqueira...” — somente disse. Foi seu exato desabafo.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

Nenhum comentário:

Postar um comentário