domingo, 15 de julho de 2018

O lagarto e o pastor

Duas dinamarquesas conversavam à beira da piscina de um hotel-fazenda em Araraquara; falavam e apontavam para o alto, onde as folhas de uma palmeira-imperial pareciam tocar as nuvens.
Claro que não entendi uma palavra da conversa, mas intuí que as escandinavas estavam fascinadas pela altura da palmeira, cujo tronco afinava sutilmente em direção ao topo. O exato desenho da palmeira é mais um mistério da natureza. Deixei a Dinamarca e andei pela antiga fazenda de café, visitei seu modesto museu, onde vi máquinas incríveis, que datam da primeira revolução industrial em São Paulo; depois entrei na tulha, na capela e imaginei um cafezal no horizonte onde, hoje, só se veem canaviais e laranjeiras.
Ia dormir num quarto onde haviam dormido colonos da antiga fazenda, um quarto modesto, com um abajur pequeno demais para quem quer ler. Quando voltei para o gramado, as dinamarquesas ainda conversavam com a palmeira; de repente uma delas deu um grito, e esse som eu entendi, porque o grito é universal. A pobre mulher estava paralisada diante de um lagarto enorme, que saíra de sua toca e agora tentava rastejar, mas as patas escorregavam na lajota lisa. A outra dinamarquesa puxou sua amiga pelos braços, ambas correram com passos de viking e, em poucos segundos, as quatro pernas alcançaram a capela no outro lado do hotel.
Temi pelo réptil assustado, um pobre réptil brasileiro, que nascera e crescera no sertão paulista. Agitava com rapidez e nervosismo o rabo, em gestos alucinantes de defesa. Tentei acalmá-lo, mas ele se apavorou, deslizou na lajota, caiu na piscina, mergulhou, nadou bravamente e foi vencido pela exaustão.
Era um lagarto velho e obeso, que ia afogar-se na água clorada. Com um galho, ofereci-lhe ajuda. Aceitou. E, quando o trouxe à terra firme, ele me encarou com olhinhos tristes. Era um teiú-açu, tão presente na minha infância. Enquanto eu observava o dorso molhado, da cor de mármore encardido, me lembrei das brincadeiras nos balneários de Manaus, das moças que morriam de medo dos camaleões que se confundiam com a folhagem e chispavam entre pernas morenas. Recordei por algum tempo essas pernas, que agora eram reais, tão reais que quase podia tocá-las. O lagarto ainda me encarava tristemente, talvez soubesse que a existência dele me conduzia a um passado distante.
Então me afastei do réptil envelhecido, entrei no quarto, peguei um livro e sentei na cadeira da varandinha. Retomei a leitura de um romance, o mesmo que havia lido em 1973 ou 74; agora parecia outro livro, porque 36 anos é tempo suficiente para criar outro leitor. A leitura avançava lentamente, a zoeira dos pássaros não me incomodava, a loucura do personagem pregando no púlpito de igrejas no sul dos Estados Unidos era verdadeira, ou assim parecia. De repente a realidade interrompeu a imaginação: uma voz estridente surgiu do quarto de um hóspede: a voz de um pastor pregando num programa de TV.
Bradava palavras rancorosas contra o demônio, o próprio pastor parecia possuído, mas seu transe soava muito mais falso e superficial do que o do personagem do romance.
Pedi ao hóspede para que diminuísse o volume do som ou fechasse a porta do quarto, mas o homem me ignorou. Fechei o livro e fui ao encontro do lagarto: permanecia no mesmo lugar, talvez traumatizado pelo mergulho na piscina. Ergueu a cabeça para mim e conversamos em silêncio, ou pensamos coisas distintas. Ele, ainda ofegante, talvez sonhasse com a paz em sua toca. Eu apenas recordava pernas assustadas e belas na margem de um rio de águas límpidas, numa época em que não se viam pastores na TV e todos nós podíamos pecar e ler sem ouvir insultos histéricos contra o diabo.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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