Ilustração: Fernando Vilela
“Medo da morte é
coisa que não tenho.
“Já olhei nos
olhos dela, já conheci seus no entanto, já discordei de suas
ideias, já lhe expliquei, ponto por ponto, cada uma de minhas
crenças. Nem estou atrás de desavença, nem é nada pessoal, não.
“Nada contra ela.
“Mas esse jeito
de se chegar, assim, toda se chegando, se fazendo de bondosa pra
enganar o sujeito, isso é coisa de gente com duas caras. Como a
morte não é gente e só é uma, não entramos em acordo. Pois não
havia de ser um bichinho de nada, mesmo tendo por nome bactéria, que
ia derrubar Antônio. No quinto dia de febre levantei-me da cama,
encarei-a bem na cara dela, mesmo pra desafiá-la, e ela, ‘Venha’,
e eu, ‘Vou nada’, e ela, ‘Então tome, febre do rato’, e eu,
‘Desavie daqui, peste bubônica’.”
“Medo da morte,
é? É medo da morte?
“Tenho não,
graças a Deus.
“Graças a Deus e
a meus dois pés que no que viram ela deram pra dançar sem nunca ter
aprendido. E ela doida vindo pra mim, e eu doido me indo dela, e
quanto mais eu dançava, mais cansada ela ficava, botava os bofes pra
fora, até que bateu quatro horas e bateu a preguiça junto.
“Nela, é claro.
“Quem já viu
homem apaixonado preguiçoso?
“O dia raiou e eu
dançando.
“O tempo passou e
eu vivendo.
“Quando minha
hora chegar eu vou com ela.
“Mas ela vai ter
que aprender a dançar forró primeiro.”
“Medo da morte
que eu conheço é o medo que ela tem de mim, desde o dia em que
bateram na minha porta: ‘Quem é?’, ‘Sou eu’, ‘É a morte,
é?’, ‘E então?’, ‘Então vá entrando que eu estava mesmo
precisando levar uma prosa com a senhora’.
“Sentou-se.
“Sentei-me na
frente dela.
“E, só pra
começar, desfiei um versinho que fiz com a pouca literatura que
tenho e o muito amor que tenho por Karina, verso ligeiro, coisa
pouca, conversa pra três dias somente. O caso é que tomei gosto
pelo troço, embalei-me no improviso, e mês e meio depois ela abriu
a boca num bocejo, mas só foi cochilar depois de dois anos. Conversa
vai, conversa vem, 15 anos se passaram e me deu vontade de cantar.
“Sabe vontade?
“Uma musiquinha
só, coisinha besta, mas a morte disse: ‘Espere. Eu vou ali
adiantar um servicinho e outro dia eu venho’.
“Tu viesse?
“Ainda hoje todo
dia eu canto, pro caso dela passar por perto, pois se tem coisa que
morte não se agrada é de cantoria, alegria e verso, de riso, de
boniteza, de conversa de menino, tampouco cor amarela.”
Adriana Falcão,
in A máquina
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