domingo, 1 de julho de 2018

Medo da morte não tenho

Ilustração: Fernando Vilela

Medo da morte é coisa que não tenho.
Já olhei nos olhos dela, já conheci seus no entanto, já discordei de suas ideias, já lhe expliquei, ponto por ponto, cada uma de minhas crenças. Nem estou atrás de desavença, nem é nada pessoal, não.
Nada contra ela.
Mas esse jeito de se chegar, assim, toda se chegando, se fazendo de bondosa pra enganar o sujeito, isso é coisa de gente com duas caras. Como a morte não é gente e só é uma, não entramos em acordo. Pois não havia de ser um bichinho de nada, mesmo tendo por nome bactéria, que ia derrubar Antônio. No quinto dia de febre levantei-me da cama, encarei-a bem na cara dela, mesmo pra desafiá-la, e ela, ‘Venha’, e eu, ‘Vou nada’, e ela, ‘Então tome, febre do rato’, e eu, ‘Desavie daqui, peste bubônica’.”

Medo da morte, é? É medo da morte?
Tenho não, graças a Deus.
Graças a Deus e a meus dois pés que no que viram ela deram pra dançar sem nunca ter aprendido. E ela doida vindo pra mim, e eu doido me indo dela, e quanto mais eu dançava, mais cansada ela ficava, botava os bofes pra fora, até que bateu quatro horas e bateu a preguiça junto.

Nela, é claro.
Quem já viu homem apaixonado preguiçoso?
O dia raiou e eu dançando.
O tempo passou e eu vivendo.
Quando minha hora chegar eu vou com ela.
Mas ela vai ter que aprender a dançar forró primeiro.”

Medo da morte que eu conheço é o medo que ela tem de mim, desde o dia em que bateram na minha porta: ‘Quem é?’, ‘Sou eu’, ‘É a morte, é?’, ‘E então?’, ‘Então vá entrando que eu estava mesmo precisando levar uma prosa com a senhora’.
Sentou-se.
Sentei-me na frente dela.
E, só pra começar, desfiei um versinho que fiz com a pouca literatura que tenho e o muito amor que tenho por Karina, verso ligeiro, coisa pouca, conversa pra três dias somente. O caso é que tomei gosto pelo troço, embalei-me no improviso, e mês e meio depois ela abriu a boca num bocejo, mas só foi cochilar depois de dois anos. Conversa vai, conversa vem, 15 anos se passaram e me deu vontade de cantar.
Sabe vontade?
Uma musiquinha só, coisinha besta, mas a morte disse: ‘Espere. Eu vou ali adiantar um servicinho e outro dia eu venho’.
Tu viesse?
Ainda hoje todo dia eu canto, pro caso dela passar por perto, pois se tem coisa que morte não se agrada é de cantoria, alegria e verso, de riso, de boniteza, de conversa de menino, tampouco cor amarela.”
Adriana Falcão, in A máquina

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