Minha empregada
entra no escritório para espanar as estantes. É uma mulher
silenciosa e digna, que parece invisível. De repente, dou com ela a
me observar pelas costas. “O senhor olha para o computador como se
estivesse em uma janela”, me diz. “Parece que vê alguma coisa
muito distante. O que é?”
Em uma pergunta,
ela capturou a grande agonia dos que escrevem. Que ideias atormentam
os escritores enquanto eles trabalham? Antes de sair do armário com
a obra pronta, no longo período que precede a exposição do texto à
luz do dia, que visões os atormentam?
Que aconteceria se,
nos intervalos da batalha, os escritores anotassem em um caderno as
experiência da luta? Em Os moedeiros falsos, um dos mais
importantes romances de André Gide, o personagem-escritor, Édouard,
registra em um caderno a crítica precoce do romance que está a
escrever – chamado, justamente, Os moedeiros falsos.
Escreve Édouard:
“Imaginem o interesse que teria para nós semelhante caderno
mantido por Dickens, ou Balzac. (...) A história da obra, de sua
gestação!”. Ele mesmo se arrisca a responder: “Seria
arrebatador... mais interessante que a própria obra”.
Pois, enquanto
escrevia Os moedeiros falsos, o próprio André Gide seguiu o
procedimento sugerido por seu personagem. O resultado, Diário dos
Moedeiros falsos (Estação Liberdade, tradução de Mário
Laranjeira), confirma a impressão de Édouard. Ou será o contrário?
O lançamento da
edição brasileira do Diário faz parte de um pacote quádruplo, que
inclui, além de Os moedeiros falsos, outros dois importantes
livros de Gide: os romances Os porões do Vaticano, de 1948, e
o inédito O pombo-torcaz, então inédito.
Na parte final de
seu diário, Gide relata um sonho que teve com Marcel Proust. Está
na biblioteca de Proust, que o convidou para um chá. Proust só lhe
aparece de costas, escondido pelas grandes orelhas da bergère.
Surpreso, Gide nota que um barbante lhe prende as mãos. O longo fio
atravessa a sala e se liga a dois livros nas prateleiras da
biblioteca.
Não se controla:
puxa o barbante com delicadeza mas determinação, até que dois
livros despencam no chão. O barulho da queda interrompe uma história
que Proust lhe contava. Não chegamos a saber de que história se
trata, sabemos apenas que foi interrompida.
Proust se retira.
Um mordomo entra na sala para recolocar os livros no lugar. Gide
confessa: “Sabia que puxando o cordão eu os derrubaria, e o puxei
assim mesmo. Foi mais forte do que eu”.
Não é por acaso
que André Gide registra o sonho em seu Diário de trabalho.
Na aparência, ele está deslocado, fora do lugar. Na verdade,
carrega em seu coração aquilo de que, desde a primeira linha (o
primeiro barbante de palavras), Gide tenta falar. Enquanto escreve, o
escritor está sempre a manejar fios que não controla e a seguir
instruções cuja origem lhe escapam.
Os fatos só
interessam a um escritor se ele puder manipulá-los – como um
fantoche com seus fios. Outra história ilustra bem isso. Em uma
manhã do ano de 1921, Gide observa a vitrine de uma livraria de
Paris. Vê um garoto que, atrapalhado, furta um livro. O menino
aproveita um momento em que o vigia lhe dá as costas (do mesmo modo
que Proust dá as costas a Gide) e enfia o livro no bolso. Ato
contínuo, percebe que um estranho, à distância, o observa.
Com medo de ser
denunciado, o garoto recoloca o livro em seu lugar. Comovido, Gide se
aproxima e lhe pergunta que livro tentava roubar. “Um guia da
Argélia. Mas custa caro demais.” O escritor lhe dá alguns francos
para que o compre.
O garoto exibe seu
livro, feliz. Para espanto de Gide, é uma edição de 1871. De
cinquenta anos antes! “É velho à beça. Não lhe servirá”, o
escritor comenta. O rapaz se surpreende: “Oh! Sim; tem os mapas. A
mim o que mais me diverte é a geografia”. Não tentou roubar um
guia de viagem. No interior do velho guia, guarda-se uma chave para o
sonho, isto é, uma obra de ficção! Livros são máquinas de
sonhar.
O episódio me
remete a uma observação que André Gide anota durante uma temporada
de descanso em Dudelange: “Às voltas com nuvens por horas a fio.
Este esforço de projetar para fora uma criação interior, de
objetivar o sujeito (antes de sujeitar o objeto) é extenuante”. A
anotação resume, de modo cru, as ideias que movem o Diário.
O mais difícil não é a escrita, mas o trabalho interior que a
precede e do qual ela não passa de um resto. Uma sobra (fezes?), que
mal e porcamente registra aquilo que se perseguiu.
O escritor, diz
Gide, navega dias a fio sem nada à vista. Escrever é atravessar
essa “vertigem do espaço vazio”. Espaço disforme e sem sentido
em que ele se engolfa. Durante a travessia, um escritor (qualquer
escritor, eu mesmo) se parece com o Gide que, na biblioteca de
Proust, em vez de ouvir as palavras do mestre ou de se deliciar com
suas lições, prefere – imitando uma criança travessa –
derrubar dois livros no chão.
Foi o que minha
empregada percebeu quando me viu olhando “através” da tela do
computador. Eu não olhava as palavras. Não revia o texto ou
assinalava correções. Não pensava no estilo ou na sintaxe –
nenhuma dessas questões técnicas que, em geral, supomos que
atormentam os escritores. Eu experimentava minha pequena vertigem.
Buscava fios
(barbantes) que segurassem o sujeito disperso e inquieto que sou. Até
que, finalmente, comecei a escrever. O resultado é esse pequeno
texto que agora vocês leem. Não é grande coisa, mas é isso.
“Escritores são
navegadores de cabotagem que acreditam estar perdidos”, diz Gide.
São homens, diz ainda, que decidem “tomar deliberadamente o
partido de sua estranheza”. Minha empregada soube ver isso em mim.
Não julgou que eu estivesse blefando ou fazendo pose, tampouco que
estivesse louco. Carinhosamente, soube ver minha pequena solidão.
Por isso escritores
estão quase sempre sozinhos. Não é fácil forçar as portas de seu
armário interior. Estão sempre afastados, inclusive, da parca
sabedoria que, a duras penas, acumularam. Distante, inclusive, de si
mesmos. Anota Gide: “Nunca aproveitar o impulso já adquirido –
tal é a regra do meu jogo”.
José Castello,
in Sábados inquietos
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