Há uma pergunta
que, quando feita a um poeta ou escritor, dói mais que picada de
escorpião. A mim, pessoalmente, nunca fizeram. Mas fizeram a amigos
meus: “Ele é do jeito mesmo como ele escreve?”. É uma pergunta
nascida do amor: acharam bonitas as coisas que escrevi e agora estão
curiosos para saber se me pareço com o que escrevo. Como disse,
nunca me fizeram a pergunta, diretamente. Mas eu respondo. “Não,
eu não sou igual ao que escrevo.” Sou um fingidor.
Quem disse isso,
que o poeta é um fingidor, foi Fernando Pessoa:
O poeta é um
fingidor.
Finge tão
completamente
Que chega a
fingir que é dor
A dor que
deveras sente.
Fingir é palavra
feia. Sugere uma mentira, com o intuito de enganar. No mundo de
Fernando Pessoa ela tem um outro sentido. Fingimento é aquilo que
faz o ator no teatro: para representar, ele tem de “fingir”
sentimentos que não são dele. E finge tão completamente que sente,
realmente, uma dor que não é dele, mas de um personagem fictício,
ausente. Assim é o poeta. Como pessoa comum, ele sofre. Essa pessoa
sofredora não sabe escrever poemas. Ela só sabe sofrer. Mas nessa
pessoa que sofre mora um outro, o poeta, o duplo, heterônimo. Esse
poeta olha para si mesmo, sofredor, e “finge”, deixa-se possuir
por aquela dor que é dele como se fosse de um outro: “chega a
fingir que é dor a dor que deveras sente”.
Sou um fingidor. O
que escrevo é melhor que eu. Finjo ser um outro. O texto é mais
bonito que o escritor. Fernando Pessoa se espantava com isso. Tinha
clara consciência de que era muito pequeno quando comparado com a
sua obra. Num dos seus poemas ele diz o seguinte: “Depois de
escrever, leio… Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde
me veio isto? Isto é melhor do que eu…”
Vinha-lhe então a
suspeita de que aquilo que ele escrevia não era obra dele, mas de um
outro: “Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta com que
alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?”.
Contaram-me que
ele, Fernando Pessoa, certa vez, aceitou encontrar-se com Cecília
Meireles, e marcaram lugar, data e hora para o dito encontro. Cecília
compareceu e esperou. Pessoa não foi e mandou, no seu lugar, um
menino com uma desculpa esfarrapada. Esse incidente sempre me
intrigou. Será que Pessoa era um grosseiro indelicado? Depois, lendo
o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, encontrei uma
curta afirmação que esclareceu tudo: “Nunca pude admirar um
poeta que me foi possível ver”. Ao marcar o encontro com
Cecília, movido pela delicadeza ou entusiasmo, ele se esqueceu
disso. Foi só na hora que lembrou. Cecília amava os seus poemas. Na
ausência, certamente, fizera aquilo que todos fazem: imaginou que o
poeta se parecia com os seus poemas. Agora, em algum hotel de Lisboa,
ela se preparava para se encontrar com a beleza dos poemas na sua
forma viva, verbo feito carne. A decepção seria muito grande.
“Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver.”
Assim, para poupar Cecília da decepção, ele preferiu não
aparecer.
Àqueles que fazem
essa pergunta a meu respeito, que imaginam que eu possa ser parecido
com o que escrevo, aconselho: “Não compareçam ao encontro. Fiquem
com o texto”.
Não é mentira,
não é falsidade: a poesia é sempre assim. A poesia não é uma
expressão do ser do poeta. A poesia é uma expressão do não-ser do
poeta. O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo
porque tenho sede e não tenho água. Sou pote. A poesia é água. O
pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados,
menos um. O pote é útil porque ele é um vazio que se pode
carregar. Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se
colher, na fonte, a água que mata a sede. Poeta é pote. Poesia é
água. Pote não se parece com água. Poeta não se parece com
poesia. O pote contém a água. No corpo do poeta estão as nascentes
da poesia.
Escher, o
desenhista mágico holandês, tem um desenho chamado Poça de lama:
numa estrada encharcada pela chuva, um caminhão deixou as marcas dos
seus pneus, onde a água barrenta se empoçou. Coisas feias e sujas,
as marcas dos pneus de um caminhão, cheias de água barrenta: nenhum
turista seria tolo de fotografar uma delas, quando há tantas coisas
coloridas para serem fotografadas. Pois Escher desenhou uma delas. E
o que ele viu é motivo de espanto: na superfície de lama suja,
refletidas, as copas dos pinheiros contra o céu azul.
Pensei que a poesia
é isso: poça de lama onde se reflete algo que ela mesma não
contém. A copa dos pinheiros contra o céu azul não está dentro da
lama, não é parte do ser da lama. Apenas reflexo: mora no seu
não-ser.
Pensei que assim é
o poeta: poça de lama onde o céu se reflete.
Nietzsche,
escrevendo sobre a poesia de Ésquilo, diz que ela “é apenas uma
imagem luminosa de nuvens e céu refletida no lago negro da
tristeza”. E Fernando Pessoa, no poema daquele verso que todo mundo
canta — “Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é
pequena” —, diz o seguinte: “Deus ao mar o perigo e o abismo
deu, mas nele é que espelhou o céu”.
É nessa
contradição: o céu se fazendo visível, refletido, na poça de
lama, no lago negro da tristeza, no perigo e no abismo do mar.
Não. Não escrevo
o que sou. Escrevo o que não sou. Sou pedra. Escrevo pássaro. Sou
tristeza. Escrevo alegria. A poesia é sempre o reverso das coisas.
Não se trata de mentira. É que nós somos corpos dilacerados —
“Oh! Pedaço arrancado de mim!”. O corpo é o lugar onde moram as
coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a
saudade, que é quando o corpo não está onde está… O poeta
escreve para invocar essa coisa ausente. Toda poesia é um ato de
feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está
ausente e não tem realidade.
Enquanto pensava
sobre essa crônica, ouvi, por acaso, aquela balada que diz: “like
a bridge over troubled waters” — “como uma ponte sobre águas
revoltas…”. Letra e música sempre me comoveram. Na liturgia do
casamento do meu filho, liturgia que preparei, pedi ao Décio,
cirurgião pianista, que tocasse essa canção: pois isso é o máximo
que alguém pode ser para a pessoa amada: ponte sobre águas
revoltas. Pensei, então, que eu sou “águas revoltas” (onde eu
mesmo quase me afogo). O que escrevo é uma ponte de palavras que
tento construir para atravessar o rio.
Assim, considero
respondida a pergunta: não sou igual ao que escrevo. Guardem o
conselho de Fernando Pessoa. É mais seguro não comparecer ao
encontro.
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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