Ela, paulistana,
era a primeira vez que visitava a família do noivo, futuro marido,
lá no interior das Minas Gerais, lugar de delicadezas, etiquetas e
regras estabelecidas. Era preciso tomar cuidado para não fazer nada
que fosse uma gaffe que ofendesse. A mãe a havia advertido
sobre o conselho do apóstolo Paulo: na mesa, coma o que puserem no
seu prato, sem fazer perguntas, fazendo cara boa e, raspado o prato,
aceitar uma segunda servida que deverá ser raspada como a primeira.
Pois que, não se aceitando a segunda, vem logo a frase espantada,
quase uma reprimenda: “Então não gostou...”.
Pratos raspados,
barrigas cheias, panelas vazias, esses eram os sinais que anunciavam
um casamento feliz. Quem come bem na mesa há de comer bem na cama...
E se, por acaso, o
convidado recusar a segunda concha de frango ao molho pardo —
aquele prato divino, alma de Minas, que se faz com frango e sangue
fresquinho que o caldo de limão não deixa coagular? Inimaginável.
Não é possível que alguém possa não gostar de frango ao molho
pardo, porque são as próprias Escrituras Sagradas que dizem que os
deuses se alimentam de sangue...
Todos os olhos
parados sobre o prato da noiva, à espera da confirmação. A única
alternativa seria uma grave indelicadeza. Ruboriza-se e faz “sim”
com a cabeça quando o que o seu corpo deseja é vomitar.
No evento em pauta
era frango, sim, mas não ao molho pardo. Parece, então, que não
havia problema algum, era frango sem sangue. Sem sangue mas cheio de
peles moles. E o pedaço que a futura sogra colocou no prato da
futura nora — todos sabem das provas de amor a que as sogras gostam
de submeter suas noras — foi o pescoço, justamente aquela torre de
vértebras descarnadas — impossível comê-las com garfo e faca, é
preciso pegá-las com os dedos e valer-se da força da sucção
pneumática para retirar a carne alojada entre os ossos... E esse
pescoço, em especial, vinha coberto por uma mole capa de pele, em
tudo semelhante a um prepúcio.
Sem alternativas.
De um lado, o corpo da senhorita que deveria colocar dentro de si o
que ela via, o tubo mole, nojento... Qual seria o pior, engolir
inteiro ou ir devagarzinho? O corpo da jovem, com todos os seus
sentidos dizia “não”.
Mas, quando o seu
corpo inteiro dizia “não”, ela disse “sim”: engoliu a
pelanca esteticamente nojenta e traz, até hoje, na memória e no
estômago, o trauma daquele almoço.
Eu acho que essa
coisa de contrariar o corpo dizendo “sim” quando ele está
dizendo “não” é uma das marcas daquilo a que se convencionou
chamar de “ser humano”. Nem bicho nem criança diz “sim”
quando o que deseja é dizer “não”. Para saber se seu filho ou
sua filha está sendo educado é só observar: se ele ou ela diz
“sim” quando o seu desejo era dizer “não”, isso quer dizer
que ele ou ela está aprendendo as regras da civilização.
Meu filho de seis
anos foi ao WC do Bar do Alemão. Havia acabado de receber sua
mesada, sua fortuna. Na saída, viu que os usuários davam gorjetas a
um funcionário que tomava conta do local. O fato de todos fazerem
aquilo, igual ao fato de todos comerem a pele mole do frango, criou
para o menino uma ordem que não era a ordem do seu corpo. Ele deu de
gorjeta, pelo seu xixizinho, todo o dinheiro que tinha. Tão pequeno
e já tão educado! Já sabe dizer “sim” quando sua vontade é
dizer “não”...
Me davam raiva os
cobradores de prestação de enciclopédia quando apareciam na data
marcada para receber a prestação. Eu dissera “sim” quando
deveria ter dito “não”. Minha raiva não era pelo dinheiro.
Minha raiva era porque eu não conseguia responder à pergunta: “Por
que é que eu disse ‘sim’ quando deveria ter dito ‘não’?”.
E nem sei as razões
que me levaram a dizer “sim” quando me pediram para escrever este
artigo. Se eu tivesse dito “não”, neste momento estaria gozando
a preguiça deliciosa e irresponsável de uma manhã de domingo em
vez de estar acordado lutando com o meu laptop...
P. S.: Mas há
muitas situações na vida em que a prudência aconselha que se
engula o sapo…
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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