quarta-feira, 25 de julho de 2018

Dos pregadores da morte

Existem pregadores da morte; e a terra está cheia daqueles a quem se deve pregar o afastamento da vida.
A terra está cheia de supérfluos, a vida é estragada pelos demasiados. Que sejam atraídos para fora dessa vida com a “vida eterna”!
Amarelos”: assim são chamados os pregadores da morte, ou “negros”. Mas eu os mostrarei a vós em outras cores.
Há os terríveis, que carregam em si o animal de rapina e não têm escolha senão entre os prazeres e a maceração. E também seus prazeres são ainda maceração.
Eles nem mesmo se tornaram homens ainda, esses terríveis: que preguem o afastamento da vida e eles próprios se vão!
Há os tuberculosos da alma: mal nasceram, já começam a morrer e anseiam por doutrinas do cansaço e da renúncia.
Queriam estar mortos, e nós deveríamos aprovar seu desejo! Guardemo-nos de despertar esses mortos e de ferir esses ataúdes vivos!
Deparam com um doente, ou um velho, ou um cadáver; e logo dizem: “A vida está refutada!”.
Mas somente eles estão refutados, e seu olhar, que enxerga somente uma face da existência.
Envoltos em espessa melancolia, e ávidos dos pequenos acasos que trazem a morte: assim a esperam, com dentes cerrados.
Ou então pegam doces e, ao fazê-lo, zombam de sua criancice: apegam-se à palhinha de sua vida e zombam do fato de ainda se apegarem a uma palhinha.
Sua sabedoria diz: “Tolo é quem continua vivendo, mas tolos assim somos nós! E justamente isso é o mais tolo na vida” —
A vida é só sofrimento” — assim dizem outros, e não mentem: cuidai, então, de cessar! Cuidai, então, de que cesse a vida que é só sofrimento!
E que esta seja a doutrina de vossa virtude: “Deves matar a ti mesmo! Deves escapar!” —
Volúpia é pecado” — dizem os que pregam a morte —, “vamos nos apartar e não mais gerar filhos!”
Dar à luz é trabalhoso” — dizem outros —, “por que ainda dar à luz? Nascem apenas infelizes!” E também eles são pregadores da morte.
É preciso compaixão” — dizem outros ainda. “Tomai o que tenho! Tomai o que sou! Tanto menos estarei ligado à vida!”
Se fossem totalmente compassivos, tornariam intolerável a vida para o próximo. Ser mau — isto seria sua verdadeira bondade.
Mas querem soltar-se da vida: que lhes importa se, com suas cadeias e dádivas, prendem ainda mais fortemente os outros! —
E também vós, para quem a vida é furioso trabalho e desassossego: não estais muito cansados da vida? Não estais maduros para a pregação da morte?
Vós todos, que gostais do trabalho furioso e do que é veloz, novo, desconhecido — mal suportais a vós mesmos, vossa diligência é fuga e vontade de esquecer a vós próprios.
Se acreditásseis mais na vida, não vos lançaríeis tanto ao momento presente. Mas não tendes, em vós, conteúdo bastante para a espera — e nem mesmo para a preguiça!
Em toda parte ecoa a voz dos que pregam a morte: e a terra está cheia daqueles a quem a morte tem de ser pregada.
Ou a “vida eterna”: para mim é o mesmo — desde que se vão rapidamente!
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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