terça-feira, 3 de julho de 2018

Das paixões alegres e dolorosas

Meu irmão, se tens uma virtude que seja tua, então não a tens em comum com ninguém.
Certamente queres chamá-la pelo nome e afagá-la; queres puxar sua orelha e entreter-te com ela.
E eis que agora tens o seu nome em comum com o povo e te tornaste povo e rebanho com tua virtude!
Farias melhor em dizer: “Inexprimível e inominável é o que faz o tormento e a delícia de minha alma, e que é também a fome de minhas entranhas”.
Que tua virtude seja demasiado alta para ter um nome familiar: e, se tiveres que falar dela, não te envergonhes de balbuciar.
Então fala e balbucia: “Este é meu bem, é o que amo, assim me agrada ele inteiramente, apenas assim quero eu o bem.
Não o quero como uma lei de Deus, não o quero como estatuto e necessidade humanos: que não seja, para mim, um indicador de mundos supraterrenos e paraísos.
Uma virtude terrena é a que eu amo: nela há pouca prudência e, menos que tudo, a razão de todos.
Mas esse pássaro construiu em mim seu ninho: por isso eu o amo e acaricio — agora ele cobre em mim seus ovos de ouro.
Assim deves balbuciar e louvar tua virtude.
Outrora tiveste paixões e as chamaste más. Mas agora tens apenas tuas virtudes: elas brotaram de tuas paixões.
Puseste tua meta suprema no centro dessas paixões: então elas se tornaram tuas virtudes e alegrias.
E, ainda que fosses da estirpe dos coléricos, ou dos voluptuosos, ou dos fanáticos religiosos, ou dos vingativos:
No final, todas as tuas paixões se tornaram virtudes, e todos os teus demônios, anjos.
Outrora tinhas cães selvagens em teu porão: mas enfim eles se transformaram em pássaros e graciosas cantoras.
De teus venenos extraíste um bálsamo; ordenhaste a tua vaca Aflição — e agora bebes o doce leite de seu úbere.
E nada de mau nascerá de ti doravante, exceto o mal que nascer da luta de tuas virtudes.
Meu irmão, se és afortunado, tens uma virtude, não mais: assim atravessas mais ligeiramente a ponte.
Ter muitas traz distinção, mas é um pesado destino; e muitos foram para o deserto e se mataram, pois estavam cansados de ser batalha e campo de batalha de virtudes.
Meu irmão, são um mal a guerra e a batalha? Mas necessário é este mal, necessárias são a inveja, a desconfiança e a calúnia entre as tuas virtudes.
Vê como cada uma das tuas virtudes anseia pelo que é mais elevado: quer todo o teu espírito, para que este seja seu arauto, quer toda a tua força na cólera, no ódio e no amor.
Cada virtude tem ciúmes da outra, e terrível coisa é o ciúme. Também as virtudes podem perecer de ciúme.
Quem é cercado pelas chamas do ciúme acaba, tal como o escorpião, voltando contra si mesmo o ferrão envenenado.
Ah, meu irmão, ainda não viste uma virtude caluniar e picar a si mesma?
O homem é algo que tem de ser superado: e por isso deves amar tuas virtudes —: porque delas perecerás. —

Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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