quarta-feira, 11 de julho de 2018

Conversa com um clochard

Nas noites do verão parisiense, turistas de todas as latitudes passeiam entre a Place de la Contrescarpe e a igreja de Saint-Médard. Nessa área — dividida pela não menos festiva Rue Mouffetard — as mesinhas dos restaurantes são separadas por meio palmo, de modo que você vê o que os vizinhos comem e bebem e, mesmo sem querer, ouve conversas alheias. Por sugestão de um vizinho — um turista italiano — optei por uma orelha de elefante, nome popular de um bife à milanesa.
Meu vizinho de mesa era casado com uma professora argelina, ambos moravam em Montreal e passavam as férias em Paris. Turistas são seres solitários. Talvez entediados pela solidão, puxaram conversa comigo e com minhas duas amigas francesas. Falaram da beleza de Montreal, da literatura bilíngue do Canadá e, quando a argelina mencionou o nacionalismo do Québec, ouvimos uma voz masculina dizer em francês: “Sou um jovem sem mãe, sem país…”.
Não sei se o clochard era órfão e apátrida, mas não parecia tão jovem. Pediu ao garçom um pedaço de baguete com molho de tomate, depois perguntou ao nosso vizinho de onde ele era.
Turim”, disse o italiano.
Turim?”, riu o clochard. “É uma das cidades iluminadas da Itália. Não me refiro à Fiat, o farol da indústria italiana. Falo dos poetas e escritores.”
Você conhece a obra de algum desses poetas?”, perguntou o turista.
O clochard recitou em italiano uns versos, cujo autor nosso vizinho logo reconheceu. Depois disse em alemão umas frases que uma das minhas amigas entendeu, assombrada com a pronúncia perfeita do vagabundo. Ela cochichou: “Nunca vi um clochard citar de cor e no original Cesare Pavese e Nietzsche”.
Depois ele disse que era duro viver na rua, duríssimo dormir durante o inverno.
O inverno sem abrigo é o inferno”, disse o clochard, abrindo a boca desdentada e soltando um bafo de vinho barato, que se misturou ao ar quente da noite. Ele nos olhou com tanta tristeza que eu perdi a fome e afastei a orelha de elefante.
Onde você leu a obra desses escritores?”, perguntou minha amiga germanista.
Na escola”, ele respondeu. “E numa biblioteca de Montrouge.”
Você fala árabe?”, perguntou a argelina.
O árabe vulgar, sim”, ele disse. “O árabe falado nas ruas de Paris e Marselha… Mas sou incapaz de ler o árabe clássico, a língua de Ibn Quzman e dos grandes poetas da Andaluzia. Vocês sabem, a frustração é um atributo do ser humano… Não sabemos tudo, não podemos conhecer tudo.”
Mas você não devia estar na rua”, disse o italiano. “Quero dizer, morando na rua. Você podia ensinar línguas estrangeiras…”
De jeito nenhum, monsieur. Aprendi seis línguas para sobreviver…Para minha alma sobreviver, e não para ensinar ou trabalhar.”
Nenhum de nós duvidou.
Mas por que você mora na rua?”, perguntou a argelina.
Não há outro lugar para viver, madame. O albergue é um horror, a gente convive com pessoas sem nenhum valor moral. Não posso alugar sequer um quarto, por isso vivo na rua. Algumas pessoas ainda me dão comida e moedas. No inverno sofro muito, mas quem não sofre neste mundo?”
E como você foi parar na rua?”
Ele agradeceu ao garçom o pão com molho de tomate e aceitou uma taça de Cahors que o vizinho italiano lhe ofereceu.
É uma longa história”, disse o clochard. “Vocês têm tempo para ouvi-la?”
A noite toda”, eu disse, sem consultar os vizinhos e as amigas.
Ouvimos a história, que era de fato longa, tão longa que sobreviveu à sobremesa, aos queijos, ao café e ao licor. O restaurante já estava fechado e os três garçons italianos, de pé, ouviam a voz do clochard.
E como sua amante morreu?”, perguntou minha outra amiga, que até aquele momento não dissera nada.
Nos meus braços”, disse o clochard. “A maioria das pessoas tem várias histórias de amor para contar. Eu tenho apenas essa, que foi uma verdadeira paixão.”
Ele nos olhou, um por um, e disse: “Não me olhem assim. Só as crianças pobres merecem compaixão. Ainda sobrou vinho?”.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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