sexta-feira, 13 de julho de 2018

Capítulo 4 - “Lento mas seguro” – Huck e o juiz – Superstição

Três ou quatro meses passaram, e agora era bem inverno. Eu tinha ido pra escola grande parte do tempo, sabia soletrar, ler, escrever só um pouco, e sabia recitar a tabuada até seis vezes sete igual a trinta e cinco, e não acho que ia poder seguir adiante algum dia, mesmo que fosse viver pra sempre. Não tenho mesmo interesse pela matemática.
No início eu odiava a escola, mas em pouco tempo cheguei num ponto em que podia suportar essa vida. Sempre que eu ficava mais cansado do que nunca, eu matava a aula, e a coça que levava no dia seguinte me fazia bem e me animava. Assim, quanto mais eu ia pra escola, mais fácil ficava a coisa. Eu também já tava me acostumando com as maneiras da viúva, e ela nem era tão dura comigo. Morar numa casa e dormir numa cama me deixava bem nervoso, em geral, mas antes do tempo frio eu costumava me esgueirar pra fora de casa e dormia na mata, às vezes, e era um descanso pra mim. Gostava mais das velhas maneiras, mas tava ficando de um jeito que também gostava das novas, um pouquinho. A viúva dizia que eu tava avançando, lento mas seguro, e me comportando de modo muito satisfatório. Dizia que não tinha vergonha de mim.
Uma manhã aconteceu de eu virar o saleiro no café da manhã. Estendi a mão pra pegar um pouco de sal bem rápido, pra jogar sobre meu ombro esquerdo e manter o azar bem longe, mas a srta. Watson foi mais rápida que eu e acabou com a minha tentativa. Ela diz: “Tira a mão, Huckleberry – que mixórdia você está sempre fazendo!”. A viúva me defendeu, mas isso não ia afastar o azar, disso eu sabia muito bem. Comecei, depois do café, a me sentir preocupado e trêmulo, querendo saber onde é que o azar ia cair em cima de mim e o que ia ser. Tem uns jeitos de manter afastado uns tipos de azar, mas este não era um desses tipos, assim nem tentei fazer nada, apenas segui adiante abatido e de sobreaviso.
Desci pelo jardim da frente e subi os degraus, ali onde a gente passa pela cerca alta de tábuas. Tinha uns centímetros de neve no chão, e vi as pegadas de alguém. Elas vinham da pedreira e pararam perto dos degraus por um tempo e depois continuaram ao redor da cerca do jardim. Era engraçado que não tinham entrado, depois de ficar paradas assim. Não conseguia entender. Era muito curioso, de certa maneira. Eu ia seguir por ali, mas me abaixei pra olhar as pegadas primeiro. De início não percebi nada, mas depois sim. Tinha uma cruz no salto da bota esquerda feita com um prego grande, pra manter o diabo afastado.
Num segundo, eu estava de pé e descendo o morro a toda. Olhava sobre meu ombro de vez em quando, mas não via ninguém. Cheguei na casa do juiz Thatcher o mais rápido que pude. Ele disse:
Ora, meu menino, você está sem fôlego. Veio buscar seu dinheiro?
Não, sinhô – digo eu. – Tem um dinheiro pra mim?
Oh, sim, os rendimentos de um semestre chegaram ontem à noite. Mais de cento e cinquenta dólares. Uma fortuna para você. Melhor deixar que eu invista a soma junto com os seus seis mil, porque se você pegar, vai gastar tudo.
Não, sinhô – digo eu –, não quero gastar nada. Não quero esse dinheiro... nem mesmo os seis mil. Quero que o sinhô fique com o dinheiro, quero dar pro sinhô, os seis mil e tudo mais.
Ele parecia surpreso. Parecia não poder entender. Perguntou:
Ora, o que você quer dizer, meu menino?
Eu disse:
Nada de perguntas sobre isso, por favor. Vai ficar com o dinheiro... não vai?
Ele disse:
Bem, estou perplexo. Há algum problema?
Por favor, pegue o dinheiro – eu disse – e não pergunte nada... porque aí não vou ter que contar mentiras.
Ele pensou um pouco e depois disse:
Ah. Acho que compreendo. Você quer vender toda a sua propriedade para mim... e não dar. Essa é a ideia correta.
Então ele escreveu algo num papel, leu com atenção e disse:
Pronto... veja que diz “por um preço”. Isso significa que comprei o dinheiro de você e paguei por ele. Aqui está um dólar para você. Agora, assine.
Assinei e fui embora.
O negro da srta. Watson, Jim, tinha uma bola de pelos do tamanho do seu punho, que tinha sido arrancada do quarto estômago de um boi, e ele usava pra fazer magia. Dizia que tinha um espírito dentro da bola e que o espírito sabia tudo. Então fui conversar com ele nessa noite e disse que papai tava aqui de novo, porque encontrei o seu rastro na neve. O que eu queria saber era o que ele ia fazer, e ele ia ficar aqui? Jim pegou a sua bola de pelos e disse alguma coisa em cima dela, depois levantou a bola e deixou ela cair no chão. Caiu bem firme, só rolou uns centímetros. Jim tentou de novo, colocou a orelha contra a bola e escutou. Mas não adiantou nada, disse que a bola não ia falar. Disse que às vezes ela não falava sem dinheiro. Eu disse que tinha uma velha moeda falsa e brilhante de vinte e cinco centavos que não valia nada, porque o latão aparecia um pouco embaixo da prata, e não ia passar por verdadeira de jeito nenhum, mesmo que o latão não aparecesse, porque era tão brilhante que parecia oleosa, e isso ia sempre denunciar que era falsa. (Calculei que era melhor não dizer nada sobre o dólar que tinha recebido do juiz.) Disse que era um dinheiro muito ruim, mas quem sabe a bola de pelos podia aceitar a moeda, porque não sabia talvez a diferença. Jim cheirou, mordeu, esfregou a moeda e disse que ia dar um jeito pra bola de pelos achar que era dinheiro bom. Disse que ia abrir uma batata crua e enfiar a moeda entre as duas partes e deixar assim toda a noite, e na manhã seguinte ninguém ia poder ver o latão, e ela não ia mais parecer oleosa, e assim qualquer um na cidade ia aceitar logo a moeda – uma bola de pelos então nem se fala! Bem, eu sabia que uma batata tinha esse efeito, mas tinha esquecido.
Jim colocou a moeda embaixo da bola de pelos, abaixou e escutou de novo. Dessa vez, disse que a bola de pelos tava legal. Disse que ela ia falar toda a minha sorte, se eu quisesse. Eu disse, continue. Assim a bola de pelos falou pra Jim, e Jim contou tudo pra mim. Ele disse:
Seu veio pai num sabe ainda o que vai fazê. Ora fala que vai imbora, dispois fala de novo que vai ficá. O mió é ficá calmo e deixá o veio decidi o que fazê. Tem dois anjo voano ao redó dele. Um deles é branco e brilhante, e o otro é preto. O branco põe ele a fazê as coisa direito, por um tempo, dispois o preto ataca e estraga tudo. Ninguém inda pode dizê qual é que vai ficá com ele no fim. Mas ocê tá bem. Vai tê muita encrenca na vida, e muita alegria. Ora vai se feri, ora vai ficá doente, mas toda veiz vai ficá bem de novo. Tem duas garota voano ao redó de ocê na vida. Uma delas é luz e a otra é escura. Uma é rica e a otra é pobre. Ocê vai casá com a pobre primeiro e com a rica daí a poco. Ocê vai querê ficá longe da água tanto quanto possível, e num corrê risco, porque tá escrito que ocê vai sê enforcado.
Quando acendi a minha vela e subi pro meu quarto naquela noite, lá tava papai, ele mesmo!
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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