Diamantinha chorava
tão bem que as pessoas vinham de longe e lhe pediam:
—Chore por mim,
Diamantinha.
O visitante sentava
na sombra do djambalau e divulgava suas mágoas. Às vezes, pareciam
tristezas de bichos. O homem, para ser humano, tem que ser desumano?
O que é certo: ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de
existir. Afinal, a vida se confirma à força de rasgão: ela
dilacera logo no acto de nascer, separando mais que a própria morte.
E assim, também naquela aldeia não havia quem não tivessse motivos
para sentar no banco de Diamantinha, requerendo lágrimas na sombra
da grande árvore.
Diamantinha gastava
o tempo nesse desfilar de desgraceira. Única condição: ela devia
olhar de frente o contador de tristezas, olhos nos olhos, lágrima de
um humedecendo a alma do outro. No final, ela baixava o rosto,
sacudindo os braços por cima da cabeça. E chorava. Cada lágrima
aliviava o confessor, faz conta a mão de um anjo suavizando feridas.
Diamantinha chorava
belo e aprazível: nunca ela ranhava, nem carantonheava. Escorriam as
lágrimas como simples transbordância, tresvassar de ondas sob as
pálpebras, insuficientes diques. A tristeza mungia-lhe os olhos e lá
vinha, abundoso e gordo, o rosário das lagrimonas.
O marido,
calculista, viu nos serviços da esposa uma hipótese de negócio. E
havia até urgência: Dia mantinha se ia fatigando de brotar tanta
água. Um dia, ela esgotaria as fontes. Antes que isso sucedesse, o
marido decretou a seguinte ordem:
—Em diante, você
só chora para quem paga.
—Mas, marido,
isso nem se pode.
—Não se pode.!?
Quem é você para saber destrançar o possível do impossível?
—É que lágrima
é coisa sagrada...
—Conversa,
mulher. Sagrados são os tacos, sejam cifrões, sejam cifrinhos.
—Não é
desrespeito, mas me diga, marido: se é tão importante o dinheiro
por que é que você não trabalha para o ganhar?
—Eu? Não posso,
estou muito ocupado. Agora, por um exemplo, ando a deixar crescer os
bigodes, um de cada lado.
—Você é quem
sabe, marido.
Marido está sempre
na mão de cima? Homem disfarça que comanda, mulher finge
obediências. A ordem das coisas: mundo e vida são o inseparável
casal.
E as gentes
continuaram afluindo, agora vertidas em clientes. O marido armara
mesa, à entrada da sombra, e cobrava consulta. E se contentava,
empilhando as moedinhas enquanto a esposa se derramava, liquides
feita. Aranha faz sua casa de quê? De lágrimas, aquilo parece seda
mas não é senão o coração esfiapadinho. Disso sabia a lagrimeira
Diamantinha.
Uma tarde,
compareceu no djambalau um tal Florival, que mal se afamara como
homem estranho, brutamonstro. Dele se dizia ser bebedor de trevas,
atravessado de serpente. Corria que o Florival fazia das outras vidas
o que a jibóia faz com o cabritinho: enrolava as e esmiudava as até
ficarem engolíveis. Diferença é que, depois, ele não engolia
nada. Todavia, no caso real, o aspecto sobrava da aparência. O
Florival tinha corpo magnífico mas era incompetente para maldades. O
homem se aperfeiçoara a palerma, baratonto, estupefátuo.
E tanto era que,
aos domingos, o Florival vestia de mulher, envergando sempre um mesmo
vestido castanho com grandes girassóis amarelos. As flores no
vestido contradiziam o aspecto maufeitor. O homem era alvo das gerais
zombarias — dito, desdito e maldito. Até havia mãos que afagavam
as falsas curvas do peito.
Pois nessa tarde, o
Florival sentou se na pedrinha, envergonhado a modos de justificar o
vestido na conformidade de suas peludas pernas. O que ele confessou
fez arrepiar a choradeira. Disse assim: que ele desde há muitos anos
lhe dedicava amor exclusivo, ímpar e imparável.
—Me ama a mim,
Florival?
Sacudindo a cabeça,
ele lhe pediu para não ser interrompido. Pois, o cada dia lhe dava
hoje, ele lhe rezava, lhe enviava as mais subtis prendas. Eram
diminutas delicadezas: um raminho, um nó de capim, réstia de ninho.
E ela, ela nem notava. E por razão de tanta indiferença o coração
dele se encaroçou. Para poupança de sofrimento Florival se resolveu
converter em mulher. Assim, colega do mesmo género, ele não a
olharia como destino de seus desejos.
—Nós ambos somos
ambas.
Diamantinha escutou
tudo até ao fim. Levantou se e espreitou entre os ramos do
djambalaueiro. Puxou com força como se entendesse desventrar a
árvore. Depois chorou, chorou como nunca havia feito. O marido,
vendo a demora, espreitou e lhe fez sinal: havia mais para quem
chorar. E fez ponto na sessão.
Na tarde seguinte,
Florival regressou e foi o mesmo derrame de pranto. E de novo o
marido, zeloso, ordenou parcimônia. Na terceira tarde, Diamantinha
deixou que Florival se sentasse, em seus femininos trejeitos, e lhe
disse:
—Não tenho mais
lágrima.
E pediu um
lugarzinho na pedra. Sentou se, espremida no mesmo assento. Ficaram
assim em silêncio até que Diamantinha pediu autorização para
ajeitar um girassol que escapava do vestido.
—Está tão
velhinho este meu vestidinho...
E trocaram
conversas de mulher, os acertos que faltavam nos cabelos, o nó no
lenço da cabeça, o anel que fugia pela magreza do dedo. Diamantinha
lhe pediu então:
—Dê me as suas
mãos. Quero lhe dar uma coisa.
—Não precisa me
dar nada, Diamantinha.
—São minhas
últimas lágrimas. Me dê as suas mãos. Rápido antes que esfriem.
Florival estendeu
as mãos em concha. E dos dedos de Diamantinha tombaram aqueles
cristaizinhos, desfocadas águas tremeluzindo em fundo escuro.
Afinal, aquilo eram diamantes, preciosos tesouros.
—São
verdadeiros?
Em amor tudo é
verdadeiro. Florival e Diamantinha se fitaram, até seus olhos
perderem o pé. Sem dizerem palavra, se enfeitaram entre folhagens,
furtando se pelos matos. Dizem os camionistas que, já noite, viram
derivar pela estrada um casal de avessas aparências: ele vestido de
mulher, e ela em roupas de macho. Tombava uma chuvinha leve,
simulando fluir da terra para o céu. E Diamantinha, braços abertos,
ajuntava novas gotas em seu peito choradeiro.
Mia Couto,
in Na berma de nenhuma estrada
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