domingo, 8 de julho de 2018

A vida na esteira

A Revolução Industrial produziu uma combinação sem precedentes de energia abundante e barata com matérias-primas abundantes e baratas. O resultado foi uma explosão na produtividade humana. A explosão se fez sentir, em primeiro lugar, na agricultura. Geralmente, quando pensamos na Revolução Industrial, pensamos em uma paisagem urbana de chaminés fumacentas, ou no sofrimento dos mineradores de carvão explorados transpirando debaixo da terra. Mas a Revolução Industrial foi, acima de tudo, a Segunda Revolução Agrícola.
Durante os últimos 200 anos, os métodos de produção industrial se tornaram o sustentáculo da agricultura. Máquinas como tratores começaram a assumir tarefas que antes eram executadas por energia muscular, ou simplesmente não executadas. Os campos e os animais se tornaram muitíssimo mais produtivos graças a fertilizantes artificiais, inseticidas industriais e todo um arsenal de hormônios e medicamentos. Refrigeradores, navios e aviões tornaram possível armazenar a produção durante meses e transportá-la de maneira rápida e barata ao outro lado do mundo. Os europeus começaram a se alimentar de carne fresca argentina e sushi japonês.
Até mesmo plantas e animais foram mecanizados. Mais ou menos na mesma época em que o Homo sapiens foi elevado a um status divino pelas religiões humanistas, os animais de criação deixaram de ser vistos como criaturas vivas capazes de sentir dor e sofrimento e passaram a ser tratados como máquinas. Hoje, esses animais muitas vezes são produzidos em massa em instalações similares a fábricas, seus corpos moldados de acordo com as necessidades industriais. Eles passam a vida inteira como engrenagens em linhas de produção gigantes, e a duração e a qualidade de sua existência são determinadas pelos lucros e perdas das corporações. Mesmo quando a indústria toma cuidado para mantê-los vivos, razoavelmente saudáveis e bem alimentados, não tem nenhum interesse intrínseco nas necessidades psicológicas e sociais dos animais (exceto quando estas têm um impacto direto sobre a produção).
Galinhas poedeiras, por exemplo, têm um mundo complexo de impulsos e necessidades comportamentais. Elas sentem desejos intensos de explorar seu ambiente, bicar e procurar alimento, determinar hierarquias sociais, construir ninhos e cuidar da aparência. Mas a indústria de ovos muitas vezes tranca as galinhas dentro de gaiolas minúsculas, e não é incomum espremerem quatro galinhas em uma única gaiola, cada uma delas com um espaço de chão de cerca de 25 por 22 centímetros. As galinhas recebem comida suficiente, mas são incapazes de reivindicar um território, construir um ninho ou se envolver em outras atividades naturais. Na verdade, a gaiola é tão pequena que em geral elas não conseguem nem mesmo abrir as asas ou ficar totalmente eretas.
Os porcos estão entre os mais inteligentes e curiosos dos mamíferos, possivelmente só ficam atrás dos grandes primatas. Mas as fazendas industrializadas de criação de porcos adotam a prática rotineira de confinar porcas lactantes dentro de caixotes de madeira tão pequenos que elas literalmente são incapazes de se virar (muito menos caminhar ou procurar comida). As porcas são mantidas nesses caixotes dia e noite durante quatro semanas depois de parir. Sua prole é retirada para ser engordada, e as porcas são inseminadas com a próxima leva de leitões.
Muitas vacas leiteiras passam quase a vida toda dentro de um pequeno cercado, pisando, sentando e dormindo sobre a própria urina e excremento. Elas recebem sua porção de alimento, hormônio e medicação de um conjunto de máquinas e são ordenhadas a cada poucas horas por outro conjunto de máquinas. A vaca é tratada como pouco mais do que uma boca que consome matérias-primas e um úbere que produz uma mercadoria. Tratar criaturas vivas que têm mundos emocionais complexos como se elas fossem máquinas tende a lhes causar não só desconforto físico como também grande estresse social e frustração psicológica.


Pintos em uma esteira em uma chocadeira comercial. Os pintos machos e fêmeas imperfeitos são retirados da esteira e asfixiados em câmaras de gás, jogados em trituradores automáticos ou simplesmente no lixo, onde morrem esmagados. Centenas de milhões de pintos morrem todos os anos em tais chocadeiras.

Assim como o comércio de escravos no Atlântico não resultou do ódio para com os africanos, a indústria animal moderna não é motivada por animosidade. Novamente, é alimentada pela indiferença. A maioria das pessoas que produzem e consomem ovos, leite e carne raramente param para pensar no destino dos frangos, vacas ou porcos cuja carne e produtos estão comendo. Aqueles que pensam muitas vezes argumentam que tais animais realmente pouco se diferem de máquinas, desprovidos de sensações e emoções, incapazes de sofrer. Ironicamente, as mesmas disciplinas científicas que criam nossas máquinas de leite e de ovos têm demonstrado, para além de qualquer dúvida, que os mamíferos e as aves têm uma composição sensorial e emocional complexa. Eles não só sentem dor física como também podem padecer de sofrimento emocional.
Segundo a psicologia evolutiva, as necessidades emocionais e sociais dos animais domésticos evoluíram na natureza, onde foram essenciais para a sobrevivência e a reprodução. Por exemplo, uma vaca selvagem precisava saber se relacionar com outras vacas e bois, ou não seria capaz de sobreviver e se reproduzir. Para aprender as habilidades necessárias, a evolução implantou nos bezerros – e nos filhotes de todos os outros mamíferos sociais – um intenso desejo de brincar (é brincando que os mamíferos adquirem novas habilidades sociais). E implantou neles um desejo ainda mais intenso de estar junto da mãe, cujo leite e cuidados eram essenciais para sua sobrevivência.
O que acontece se, hoje, um fazendeiro separa uma bezerra da mãe, a coloca em uma jaula, lhe dá comida, água e inoculações contra doenças, e então, quando ela tiver idade suficiente, a insemina com esperma de boi? De uma perspectiva objetiva, essa bezerra já não precisa do vínculo com a mãe, nem de companheiros de brincadeira, para sobreviver e se reproduzir. Mas, de uma perspectiva subjetiva, a bezerra ainda sente um intenso desejo de estar junto da mãe e de brincar com outros bezerros. Se esses desejos não forem atendidos, a bezerra sofre muitíssimo. Essa é a lição elementar da psicologia evolutiva: uma necessidade formada na natureza continua a ser sentida subjetivamente, mesmo que já não seja necessária para a sobrevivência e a reprodução nas fazendas industriais. O que há de trágico na agricultura industrial é que ela se ocupa muito das necessidades objetivas dos animais, mas negligencia suas necessidades subjetivas.
A verdade dessa teoria é conhecida pelo menos desde os anos 1950, quando o psicólogo norte-americano Harry Harlow estudou o desenvolvimento de macacos. Harlow separou macacos recém-nascidos de suas mães várias horas após o nascimento. Os macaquinhos foram isolados dentro de gaiolas e criados por mães artificiais. Em cada gaiola, Harlow colocou duas mães artificiais. Uma era feita de fios de metal e equipada com uma mamadeira na qual o macaquinho podia mamar. A outra era feita de madeira coberta com tecido, o que a fazia lembrar uma mãe macaca de carne e osso, mas não fornecia ao macaquinho nenhum sustento material. Presumia-se que os macaquinhos se agarrariam à mãe de metal e não à mãe de madeira.
Para surpresa de Harlow, os macaquinhos mostraram uma preferência notável pela mãe de madeira, passando a maior parte do tempo com ela. Quando as duas mães eram colocadas bem próximas uma da outra, os macaquinhos se agarravam à mãe de madeira mesmo enquanto se esticavam para sugar leite da mãe de metal. Harlow suspeitou que talvez os macaquinhos fizessem isso porque sentiam frio. Então colocou uma lâmpada elétrica dentro da mãe de metal, que agora radiava calor. A maioria dos macaquinhos, exceto os muito jovens, continuou a preferir a mãe de madeira.
As pesquisas seguintes mostraram que os macacos órfãos de Harlow, ao crescer, ficaram emocionalmente abalados, embora tivessem recebido todo o nutriente de que necessitavam. Eles nunca se adequaram à sociedade de macacos, tinham dificuldade para se comunicar com outros macacos e sofriam de níveis elevados de ansiedade e agressão. A conclusão era inevitável: os macacos devem ter necessidades e desejos psicológicos que vão além de suas necessidades materiais e, se esses não são satisfeitos, sofrem muitíssimo. Os macaquinhos de Harlow preferiam ficar junto da mãe coberta de tecido porque buscavam não apenas leite, mas também um vínculo emocional. Nas décadas seguintes, vários estudos mostraram que essa conclusão se aplica não só aos macacos, mas também a outros mamíferos, bem como às aves. Hoje, milhões de animais de fazenda são submetidos às mesmas condições dos macados de Harlow, quando os fazendeiros rotineiramente separam bezerros, cabritos e outros filhotes de suas mães para serem criados em isolamento.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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