sexta-feira, 20 de julho de 2018

A propósito da neve úmida

A versatilidade é verdadeiramente espantosa, e sabe Deus em que ela pode se transformar, como se desenvolverá nas circunstâncias futuras e o que promete a seguir. E o material até que não é ruim! Não falo isso por alguma patriotice ridícula. Aliás, tenho certeza de que passou novamente pela cabeça dos senhores que estou gracejando. Mas quem sabe? Talvez seja o contrário, talvez os senhores acreditem que eu realmente penso assim. De qualquer maneira, vou considerar uma honra para mim e um particular prazer ambas as opiniões dos senhores. Quanto ao meu parêntese, peço que me perdoem.
Com meus colegas, naturalmente eu não tinha amizade e em pouco tempo mandava-os às favas e, em consequência de minha inexperiência e pouca idade, até parava de cumprimentá-los, rompendo com eles. Isso, aliás, aconteceu comigo apenas uma vez; em geral, eu estava sempre só.
O que eu mais fazia em casa era ler. Queria que as impressões exteriores sufocassem tudo o que constantemente se acumulava dentro de mim. E a leitura era para mim a única fonte possível de impressões exteriores. A leitura, é claro, me ajudava muito: emocionava, deliciava e torturava. Mas de vez em quando ela me entediava terrivelmente. Apesar de tudo, sentia desejo de me movimentar e, de repente, mergulhava numa libertinagem, ou melhor, numa libertinagenzinha, escura, subterrânea, nojenta. Minhas paixõezinhas eram agudas, ardentes, devido à minha permanente e doentia irritabilidade. Aconteciam-me acessos histéricos, com lágrimas e convulsões. Tirando a leitura, não havia aonde ir, ou seja, não havia naquela época nada que eu pudesse respeitar e que me atraísse no meio em que vivia. Além disso, a angústia crescia dentro de mim. Surgia uma sede histérica de contradições, de contrastes, e entregava-me então à devassidão. Não foi absolutamente para me justificar que eu me pus agora a falar tanto sobre isso... Aliás, não! Menti! Justificar-me era precisamente o que eu queria. O que estou fazendo, senhores, é um pequeno lembrete para mim mesmo. Não quero mentir. Dei minha palavra.
Eu saía para a libertinagem à noite, secretamente, com medo e com sensação de sujeira, sentindo uma vergonha que não me abandonava nem nos instantes mais repugnantes, como uma maldição. Já então eu trazia na alma o meu subsolo. Sentia um medo terrível de ser visto e reconhecido, pois andava por vários lugares bastante sórdidos.
Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. “Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?”.
Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.
Mal eu havia entrado, um oficial mexeu com meus brios.
Eu estava parado junto ao bilhar e, sem notar, obstruí o caminho por onde ele precisava passar; ele me pegou pelos ombros e, sem dizer nada, sem me prevenir ou dar uma explicação, moveu-me para outro lugar e passou, como se nem me notasse. Eu o perdoaria até mesmo se ele tivesse me esmurrado, mas não pude perdoá-lo por me haver movido do lugar sem nem ao menos se dar conta disso.
Só Deus sabe o que eu não daria naquele momento por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais, por assim dizer, literária! Trataram-me como se eu fosse uma mosca. Aquele oficial era alto; quanto a mim, sou baixinho e franzino. A briga, aliás, estava a meu favor: bastava protestar e seria atirado pela janela. Mas mudei de ideia e preferi... sumir dali, morrendo de raiva.
Saí da taverna abalado e perturbado, indo direto para casa. E no dia seguinte, continuei a minha devassidãozinha de maneira ainda mais tímida, oprimida e triste do que antes, as lágrimas quase brotando nos meus olhos, mas mesmo assim continuei. Não pensem, aliás, que foi por covardia que eu recuei diante do oficial: no fundo, nunca fui covarde, embora na prática tenha constantemente me portado como tal, mas – não riam ainda, para isso há uma explicação; tenho explicação para tudo, estejam certos disso.
Ah, se esse oficial fosse daqueles que concordavam em se bater em duelo! Mas não, este era precisamente daquele tipo de senhores (que pena! desaparecidos faz tempo) que preferiam se valer de tacos de bilhar ou que, como o tenente Pirogov, de Gógol, recorriam às autoridades. Não se batiam em duelo e considerariam uma coisa indecorosa duelar com nossos irmãos civis – e, de maneira geral, achavam que o duelo era coisa impensável, coisa dos livres-pensadores e dos franceses. Mas eles próprios humilhavam bastante o próximo, especialmente se eles mesmos eram de estatura elevada.
Naquele dia eu procedi como um covarde, mas não por covardia, e sim por uma vaidade descomunal. Tive medo não da altura do meu ofensor, nem da dor da possível surra ou de ser atirado pela janela; estou certo de que eu teria suficiente coragem física; mas faltou-me coragem moral. Tive medo de que os presentes – desde o rapaz insolente que marcava os pontos até o mais insignificante barnabezinho espinhento e malcheiroso que por ali rondava com seu colarinho ensebado – não compreendessem e zombassem quando eu começasse a protestar, expressando-me em linguagem literária. Porque sobre o ponto de honra, isto é, não sobre a honra, mas sobre o ponto de honra (point d’honneur), até hoje aqui não se pode falar de outra forma que não seja a literária. Ninguém se refere a esse “ponto de honra” com a linguagem comum. Eu tinha plena convicção (vejam o senso da realidade, apesar de todo o romantismo!) de que todos eles simplesmente morreriam de rir e de que o oficial não se contentaria em me bater, ou seja, não bateria de maneira inofensiva, e fatalmente me daria joelhadas, obrigando-me a correr ao redor da mesa de bilhar, e só depois faria o favor de me jogar pela janela. É evidente que essa história miserável não poderia terminar simplesmente assim em se tratando de mim. Encontrei depois muitas vezes o tal oficial na rua e o estudei bem. Só não fiquei sabendo se ele me reconhecia. Creio que não; alguns indícios me levam a essa conclusão. Quanto a mim, olhava para ele com raiva e ódio, e isso durou... vários anos, senhores! Minha raiva até mesmo se fortalecia e aumentava com o passar dos anos. Comecei por investigar às escondidas esse oficial. Isso era difícil para mim, pois não conhecia ninguém. Mas, uma vez, alguém na rua o chamou pelo sobrenome, no momento em que eu o seguia a uma certa distância, como se estivesse atado a ele, e fiquei sabendo então seu sobrenome. Em outro dia, eu o segui até seu prédio e por dez copeques consegui que o zelador me dissesse qual o seu andar, se morava sozinho ou com alguém, etc. – em suma, tudo que se pode extrair de um zelador. Certa manhã, embora eu nunca me dedicasse à literatura, veio-me de repente a ideia de descrever esse oficial na forma de uma denúncia, de maneira caricatural, e de fazer disso uma novela. Foi com deleite que escrevi essa novela. Fiz acusações e até calúnias; a princípio, modifiquei levemente o sobrenome, de uma maneira que ainda pudesse ser reconhecido; porém, depois de uma reflexão mais madura, troquei-o por outro e mandei a novela para os Anais da Pátria. Mas não estavam na moda ainda as denúncias, e eles não publicaram minha novela. Fiquei muito chateado com isso. Às vezes a raiva me sufocava. Finalmente, resolvi desafiar meu adversário para um duelo. Compus uma carta belíssima e atraente, suplicando-lhe que se desculpasse comigo; caso ele se recusasse, eu insinuava com bastante firmeza a ideia de um duelo. A carta foi escrita de tal maneira que, se o oficial entendesse ao menos um pouquinho do “belo e sublime”, viria correndo lançar-se ao meu pescoço e oferecer-me sua amizade. E como isso seria bom! Nós nos daríamos tão bem! Tão bem! Ele me defenderia com a importância da sua posição; eu o enobreceria com minha cultura e... bem... e com ideias também, e muitas outras coisas poderiam acontecer! Imaginem os senhores que já se haviam passado dois anos desde que ele me ofendera, e meu desafio era o mais horrível anacronismo, apesar de toda a astúcia da minha carta em explicar e disfarçar o anacronismo. Mas, graças a Deus (até hoje agradeço ao Altíssimo com lágrimas nos olhos), não enviei a minha carta. Um frio me percorre o corpo quando penso no que poderia ter acontecido se a tivesse enviado. E, de repente... de repente eu me vinguei da maneira mais simples e mais genial! Subitamente veio-me à cabeça uma ideia luminosa! Às vezes, nos feriados, eu costumava ir para a Avenida Névski depois das três horas e ficava passeando no lado ensolarado. Melhor dizendo, eu não fazia propriamente um passeio, e sim sofria inúmeras torturas, humilhações e derrames de bile, mas talvez fosse disso que eu precisasse. Da maneira mais abominável, eu serpenteava como uma enguia entre os transeuntes, cedendo constantemente a passagem ora a generais, ora a oficiais da cavalaria ou dos hussardos, ora às senhoras; nesses instantes, eu sentia dores agudas no coração e um calor nas costas quando me lembrava da miséria de minha vestimenta e da insignificância e vulgaridade de minha serpenteante figurinha. Aquilo era um verdadeiro suplício, uma humilhação constante e insuportável, proveniente da ideia, que se tornava uma sensação insistente e concreta, de que eu era uma mosca no meio de toda aquela gente, uma reles mosca desnecessária – mais inteligente, mais culta e mais nobre do que todos eles, evidentemente –, porém, uma mosca que cede sempre diante de todos, que todos humilham e ofendem. Para que eu buscava tal sofrimento, por que ia à Avenida Névski? Não sei dizer, mas alguma coisa simplesmente me arrastava para lá a cada oportunidade.
Dostoievski, in Notas do subsolo

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