quarta-feira, 11 de julho de 2018

A doutrina do livre-arbítrio

A atitude dos cristãos em relação à lei natural tem sido curiosamente vacilante e incerta. Havia, de um lado, a doutrina do livre-arbítrio, em que a grande maioria dos cristãos acreditava – e essa doutrina exigia que os atos dos seres humanos, pelo menos, não estivessem sujeitos às leis naturais. Havia, de outro lado, principalmente nos séculos XVIII e XIX, uma crença em Deus como o Legislador e na lei natural como uma das principais evidências da existência de um Criador. Em épocas recentes, a objeção ao domínio da lei nos interesses do livre-arbítrio começou a ser sentida com mais força do que a crença no fato de a lei natural dar evidências da existência de um Legislador. Os materialistas usaram as leis da física para mostrar, ou tentar mostrar, que os movimentos dos corpos humanos são determinados de maneira mecânica e que, em consequência, tudo o que dizemos e toda mudança de posição que efetuamos se localiza fora da esfera de qualquer livre-arbítrio possível. Se for assim, tudo o que fica a cargo de nossas vontades desagrilhoadas não tem lá muito valor. Se, quando um homem escreve um poema ou comete um assassinato, os movimentos corporais envolvidos em seu ato resultam unicamente de causas físicas, pareceria absurdo erguer uma estátua para ele no primeiro caso e enforcá-lo no segundo. Pode ser que ainda reste, em certos sistemas metafísicos, uma região de pensamento puro em que o arbítrio seria livre; mas, como isso só pode ser comunicado aos outros por meio de movimentos corporais, o domínio da liberdade nunca poderia estar sujeito à comunicação e nunca poderia ter nenhuma importância social.
Ademais, a evolução exerceu influência considerável sobre aqueles cristãos que a aceitaram. Eles viram que não adiantava nada fazer alegações a favor do homem completamente diferentes daquelas feitas em relação a outras formas de vida. Portanto, para poder salvaguardar o livre-arbítrio no homem, fizeram objeção a todas as tentativas de explicar o comportamento da matéria viva nos termos das leis físicas e químicas. A posição de Descartes, segundo a qual todos os animais inferiores são autômatos, não mais encontra simpatia entre os teólogos liberais. A doutrina da continuidade faz com que eles se sintam propensos a dar um passo adiante e defender que até mesmo aquilo que se chama de matéria morta não tem seu comportamento governado de maneira rígida por leis inalteráveis. Ao que parece, eles fizeram vista grossa ao fato de que, se for abolido o domínio da lei, também se fará abolir a possibilidade de milagres, já que milagres são atos de Deus que vão contra as leis que governam os fenômenos comuns. Sou capaz, no entanto, de imaginar um teólogo liberal moderno defendendo, com ar de profundidade, que toda a criação é milagrosa, de modo que não precisa mais se prender a certas ocorrências como evidência especial da intervenção divina.
Sob a influência dessa reação contra a lei natural, alguns defensores do cristianismo fiam-se nas mais recentes doutrinas relativas ao átomo, segundo as quais as leis da física em que acreditamos até agora só dizem respeito a uma verdade razoavelmente aproximada ao ser aplicada a grandes números de átomos, ao passo que o elétron individual age praticamente como bem entende. Acredito que esta seja uma fase temporária e que os físicos, com o tempo, descobrirão leis que governam os fenômenos atômicos, apesar de ser possível que essas leis sejam consideravelmente diferentes daquelas da física tradicional. Seja como for, vale a pena observar que as doutrinas modernas que dizem respeito aos fenômenos atômicos não têm influência sobre nada que seja de importância prática. Os movimentos invisíveis e, de fato, todos os movimentos que fazem qualquer diferença para alguém envolvem números tão grandes de átomos que se encaixam bem no escopo das antigas leis. Para escrever um poema ou cometer assassinato (voltando à nossa ilustração anterior), é necessário deslocar uma massa considerável de tinta ou de chumbo. Os elétrons que compõem a tinta podem estar dançando livremente pelo seu salão de baile, mas o salão de baile como um todo se move de acordo com as antigas leis da física, e apenas isso é o que interessa ao poeta e a seu editor. As doutrinas modernas, portanto, não têm uma influência significativa sobre nenhum desses problemas de interesse humano dos quais o teólogo se ocupa.
A questão do livre-arbítrio, em consequência, permanece exatamente onde estava. Seja o que for que se pense a respeito dela como questão de metafísica extrema, está muito claro que, na prática, ninguém acredita nisso. Todo mundo sempre acreditou ser possível treinar o caráter; todo mundo sempre soube que o álcool ou o ópio surtem um certo efeito sobre o comportamento. O defensor ferrenho do livre-arbítrio afirma que um homem pode, por meio da força de vontade, evitar embebedar-se, mas não afirma que, quando bêbado, um homem seja capaz de dizer “Constituição Britânica” com tanta clareza como se estivesse sóbrio. E todos os que já lidaram com crianças algum dia sabem que uma dieta adequada funciona mais do que os sermões mais eloquentes do mundo para que elas cresçam cheias de virtude. O único efeito que a doutrina do livre-arbítrio exerce, na prática, é evitar que as pessoas sigam ideias tão repletas de senso comum quanto esta até sua conclusão racional. Quando um homem age de uma maneira que nos irrita, temos vontade de julgar esse homem mau, e nos recusamos a aceitar o fato de que o comportamento irritante dele é resultado de causas anteriores e que, se remontarmos à sua origem de maneira satisfatória, chegaremos a uma época anterior ao seu nascimento e, portanto, a eventos sobre os quais ele não pode ser responsabilizado, por mais que se queira.
Nenhum homem trata um automóvel da maneira tola como trata outro ser humano. Quando o carro não dá a partida, não se atribui esse comportamento irritante ao pecado; não se diz: “Você é um automóvel mau, e não lhe darei mais gasolina até que dê a partida”. Tenta-se descobrir o que há de errado e consertar a falha. Uma maneira análoga de tratar os seres humanos é, no entanto, considerada contrária às verdades da religião sagrada. E isso se aplica até mesmo ao tratamento dispensado a crianças pequenas. Muitas crianças têm maus hábitos que se perpetuam por meio de castigos, mas que provavelmente deixariam de existir se não se desse atenção a eles. Mesmo assim, as governantas, com pouquíssimas exceções, consideram correto aplicar castigos, apesar de assim correrem o risco de causar insanidade. Quando a insanidade é causada, ela chega a ser citada nos tribunais de Justiça como prova do prejuízo causado pelo hábito, e não pelo castigo (estou fazendo alusão a um processo recente por obscenidade, no estado de Nova York).
As reformas na educação foram feitas, em grande parte, por meio do estudo dos insanos e dos deficientes mentais, pois estes não foram responsabilizados moralmente por suas falhas e, portanto, foram tratados de maneira mais científica do que as crianças normais. Até tempos muito recentes, defendia-se que, se um menino não fosse capaz de aprender suas lições, a cura adequada era dar-lhe golpes de bengala ou de vara. Essa visão já está quase extinta no que diz respeito às crianças, mas sobrevive no direito criminal. É óbvio que um homem com propensão ao crime precisa ser detido, mas o mesmo vale para um homem que tem hidrofobia e quer morder os outros, apesar de ninguém considerá-lo moralmente responsável. Um homem que sofra de peste negra precisa ficar preso até estar curado, apesar de ninguém o considerar mau. O mesmo deveria ser feito com um homem que tivesse propensão para falsificações; mas não deveria haver mais ideia de culpa em um caso do que no outro. E isso é apenas bom-senso, apesar de ser uma forma de bom-senso a que a ética e a metafísica cristãs se opõem.
Para julgar a influência moral de qualquer instituição sobre uma comunidade, é preciso levar em conta o tipo de impulso incorporado na instituição e o grau em que a instituição aumenta a eficiência do em tal comunidade. Às vezes, o impulso em questão é bastante óbvio; outras vezes, está mais oculto. Um clube de alpinismo, por exemplo, obviamente incorpora o espírito de aventura, enquanto uma sociedade culta incorpora o impulso em direção ao conhecimento. A família como instituição incorpora o ciúme e o sentimento parental; um time de futebol ou um partido político incorpora o impulso em direção ao jogo competitivo. Mas as duas maiores instituições sociais – especificamente, a Igreja e o Estado – são mais complexas no que diz respeito à sua motivação psicológica. O propósito primordial do Estado é claramente a segurança contra os criminosos internos e os inimigos externos. Ele está enraizado na tendência que as crianças têm de se agrupar quando estão com medo e de procurar um adulto que lhes dê uma sensação de segurança. A Igreja tem origens mais complexas. Sem dúvida, a principal fonte da religião é o medo; isso pode ser visto hoje em dia, já que qualquer coisa que cause preocupação faz com que os pensamentos das pessoas se voltem para Deus. Batalhas, pestilências e naufrágios, tudo isso pode fazer com que as pessoas se tornem religiosas. A religião tem, no entanto, outros atrativos além do terror: ela apela, especificamente, à autoestima humana. Se o cristianismo é verdadeiro, a humanidade não é esse monte de vermes deploráveis que parece ser; as pessoas são do interesse do Criador do universo, que se dá o trabalho de ficar feliz quando elas se comportam bem e chateado quando se comportam mal. Esse é um enorme elogio. Não pensaríamos em estudar um formigueiro para descobrir quais formigas desempenharam sua função de formiga, e com certeza não cogitaríamos separar aquelas formigas que foram relapsas para lançá-las à fogueira. Se Deus faz isso por nós, se torna um elogio à nossa importância; e é um elogio ainda mais agradável se Ele recompensa aqueles entre nós que são bons com a felicidade eterna no paraíso. Há, também, a ideia relativamente moderna de que a evolução cósmica foi elaborada de modo a suscitar os tipos de resultado que chamamos de bons – quer dizer, os tipos de resultado que nos trazem prazer. Aqui, mais uma vez, é agradável imaginar que o universo é controlado por um Ser que compartilha dos nossos gostos e preconceitos.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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