segunda-feira, 2 de julho de 2018

A alma e a imortalidade

A ênfase cristã dada à alma individual teve influência profunda sobre a ética das comunidades cristãs. É uma doutrina fundamentalmente assemelhada àquela dos estoicos, e que surgiu como a deles, em comunidades que já não podiam mais nutrir esperanças políticas. O impulso natural das pessoas vigorosas e com decência de caráter é tentar fazer o bem, mas se elas forem destituídas de toda força política e de toda oportunidade de influenciar acontecimentos, elas serão desviadas de seu caminho natural e chegarão à conclusão de que o mais importante é serem boas. Foi o que aconteceu com os primeiros cristãos; isso os levou a uma concepção de santidade pessoal como algo absolutamente separado da ação beneficente, já que a santidade tinha de ser algo que pudesse ser atingido por pessoas impotentes na ação. A virtude social passou então a ser excluída da ética cristã. Até hoje, os cristãos convencionais pensam que um adúltero é mais demoníaco do que um político que aceita propina, apesar de o segundo provavelmente causar mil vezes mais prejuízo do que o primeiro. A concepção medieval de virtude, como se vê em seus quadros, era algo ralo, fraco e sentimental. O homem mais virtuoso era aquele que se afastava do mundo; os únicos homens de ação considerados santos eram aqueles que desperdiçavam a vida e a substância de seus súditos em lutas contra os turcos, como São Luís. A Igreja nunca consideraria um homem santo por ter reformado as finanças, ou as leis criminais, ou o judiciário. Tais contribuições simples ao bem-estar humano eram consideradas sem importância. Não acredito que haja em todo o calendário um único santo cuja santidade esteja relacionada à utilidade pública. Andava junto com essa separação entre a persona social e a persona moral a separação crescente entre a alma e o corpo, que sobreviveu na metafísica cristã e nos sistemas derivados de Descartes. Pode-se dizer, de maneira generalizada, que o corpo representa a parte social e pública do homem, ao passo que a alma representa a parte privada. Ao dar ênfase à alma, a ética cristã se transformou em algo totalmente individualista. Penso estar claro que o resultado de tantos séculos de cristianismo foi fazer com que os homens se tornassem mais egoístas, mais fechados em si mesmos, do que a natureza os fez – porque os impulsos que naturalmente levam os homens para fora dos muros de seu ego são os sexuais, os paternais e os patrióticos – ou o instinto de rebanho. A Igreja fez tudo o que pôde para aviltar e degradar o sexo; a afeição familiar foi desprezada pelo próprio Cristo e pelo grosso de seus seguidores; e o patriotismo não conseguiu encontrar lugar entre as populações de súditos do Império Romano. A polêmica contra a família nos Evangelhos é uma questão que não recebeu a atenção merecida. A Igreja trata a Mãe de Cristo com reverência, mas Ele próprio mostrou pouco dessa atitude. “Mulher, que tenho eu contigo?” (João 2:4) é a maneira como fala com ela. Ele também diz: “(...) vim separar o filho do seu pai, e a filha da sua mãe, e a nora da sua sogra. (...) O que ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mateus 10:35-37). Tudo isso significa a dissolução do laço biológico familiar em nome da crença – atitude que tinha muito a ver com a intolerância que veio ao mundo com a disseminação do cristianismo.
Esse individualismo culminou na doutrina da imortalidade da alma individual, que gozaria para todo o sempre de felicidade infinita ou de desgraça infinita, dependendo das circunstâncias. As circunstâncias das quais essa diferença importantíssima dependia eram um tanto curiosas. Por exemplo, se uma pessoa morresse imediatamente depois de um padre ter espargido água sobre ela enquanto pronunciava certas palavras, essa pessoa herdaria a felicidade eterna; no entanto, se depois de uma longa vida cheia de virtudes a pessoa fosse atingida por um raio em um momento em que estivesse proferindo palavras feias porque o cadarço do sapato tinha arrebentado, herdaria o tormento eterno. Não estou dizendo que o protestante cristão moderno acredite nisso, nem mesmo, talvez, o católico cristão moderno que não tenha sido adequadamente instruído em teologia; mas digo, sim, que essa é a doutrina ortodoxa em que se acreditava com muita firmeza até épocas bem recentes. Os espanhóis no México e no Peru costumavam batizar os bebês indígenas e imediatamente esmagar-lhes o cérebro: dessa maneira, garantiam que esses bebês iriam para o céu. Nenhum cristão ortodoxo é capaz de encontrar alguma razão lógica para condenar a ação deles, apesar de hoje em dia todos o fazerem. De maneiras incontáveis, a doutrina da imortalidade pessoal, em sua forma cristã, surtiu efeitos desastrosos sobre a moral, e a separação metafísica de alma e corpo surtiu efeitos desastrosos sobre a filosofia.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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