sexta-feira, 1 de junho de 2018

Transpondo as cercas da experiência

A forma que tomam as palavras movidas pela lógica do amor se chama poesia. O corpo fala a linguagem da poesia. O corpo só entende a linguagem da poesia.
As palavras do corpo se movem “ao sabor”. Assim, quando elas vagueiam por lugares aparentemente sem sentido, dando saltos inesperados – você nunca se surpreendeu com uma ideia que aparece de repente, peixe que salta e rasga o contínuo fluir da superfície do rio-consciência? – quando elas vagueiam ao sabor (os saberes não vagueiam), elas seguem a lógica do desejo. Lógica é um jeito não arbitrário de passar de uma ideia a outra. Não existe arbitrariedade nos saltos do pensamento. O corpo está dançando, ao sabor, em busca do seu objeto...
Tales de Mileto afirmava que “Tudo é um”. Nietzsche escreveu sobre ele um ensaio no qual comenta o insólito dessa afirmação filosófica:
É notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os tempos, quando queria elevar-se ao seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente, o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando as pedras: o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato.”
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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