Traduzir é
substituir palavras que não se conhecem por palavras conhecidas.
Trata-se de uma delicada combinação de ciência e arte. Ciência
porque o tradutor, antes de mais nada, tem de ser um dicionário que
contenha as palavras conhecidas e as palavras não conhecidas. Caso
contrário, a tradução não será possível. Do engano sobre o
sentido das palavras e das traduções equivocadas surgem os maiores
desentendimentos. O que levou os linguistas de uma universidade do
país de Lagado, visitado por Gulliver, a propor que, no processo de
comunicação, as palavras fossem substituídas pelos objetos que
elas representam. Em vez de falar “laranja”, mostrar uma
laranja... A proposta só não foi implementada por razões práticas:
havia objetos muito grandes, o que tornou as conversas limitadas a
objetos que pudessem ser levados nas mãos, bolsos e bolsas.
E há também os
sentidos sutis que o dicionário não ajuda na tradução, pois que
vêm nos interstícios das palavras a que Fernando Pessoa se referiu.
Esse caso que vou
relatar se encontra no delicioso livro No país das sombras longas.
Esse título, em si mesmo, é um teste para seus conhecimentos. Que
país é esse em que as sombras são sempre longas? Qual é a
condição astronômica para que isso aconteça? Quem tiver
conhecimentos rudimentares de astronomia deve saber onde fica esse
país e que clima é o seu. Eis aí uma pergunta que deveria cair no
Enem... É um livro delicioso de aventuras, em meio a gelos sem fim,
ursos, focas, cães, trenós e costumes diferentes, entre eles o
anzol para pegar as pulgas que vivem dentro das roupas de couro
costuradas sobre o corpo...
Pois minha leitura
foi interrompida por esta frase estranha: “Siorakidsok era
paralítico da cintura para baixo e tinha ouvidos duros”.
Ouvidos duros... Não fez nenhum sentido. Até que me vali de um
truque da imaginação: tentei fazer a tradução ao contrário, do
português para o inglês. Ouvidos duros, ao contrário: “hard of
hearing”. O homem era surdo...
Logo na página
seguinte, esta frase me parou de novo: “A um canto via-se uma
grande calha de pedra pela qual todos passavam as suas á guas
servidas, valiosas para o curtimento de couro...”. Suas águas
servidas? O que é isso? Usei então o mesmo método de decifração.
Traduzi ao contráro: “passavam suas águas servidas”, “pass
water”, que quer dizer fazer xixi...
A tal calha de
pedra era um mictório…
Agora, alguns
versos do poema “The Rock”, de T. S. Eliot:
The Eagle soars
in the summit of Heaven,
The Hunter with
his dogs pursues his circuits.
O perpetual
revolution of configured stars.
O perpetual
recurrence of determined seasons...
Esses versos
parecem descrever um cenário de caça, a águia, ave de rapina, voa
nas alturas. Sobre os campos, um caçador com seus cães trilha os
seus caminhos. E foi assim que o tradutor traduziu o texto.
“A Águia
paira sobre os píncaros dos céus, o Caçador com seus cães
rastreia-lhe o trajeto. Ó perene revolução de estrelas
consteladas...”
Parece que a
tradução está certinha. A não ser pelo fato de que Eliot diz que
ele está descrevendo o caminho dos astros no céu: a revolução
permanente das estrelas consteladas. É esse fato que dá a chave
para a tradução.
“Eagle” não é
uma ave em voo: é uma constelação cujo nome em português é
“Áquila”. O “Hunter” é o nome em inglês para a constelação
que é atravessada pelas “Três Marias”, o Órion. E os cães não
são cães de caça. São as constelações ao lado do Órion, o Cão
Menor e o Cão Maior, na qual se encontra a Sirius, a estrela mais
brilhante do céu.
A tradução certa,
então, seria “A Áquila paira sobre os píncaros dos céus, o
Órion com seus cães rastreia-lhe o trajeto...”. Assim, saímos
da companhia do caçador, da águia e dos cães e somos devolvidos ao
mistério das estrelas nos céus…
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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