terça-feira, 26 de junho de 2018

Tradutor, Traidor

Traduzir é substituir palavras que não se conhecem por palavras conhecidas. Trata-se de uma delicada combinação de ciência e arte. Ciência porque o tradutor, antes de mais nada, tem de ser um dicionário que contenha as palavras conhecidas e as palavras não conhecidas. Caso contrário, a tradução não será possível. Do engano sobre o sentido das palavras e das traduções equivocadas surgem os maiores desentendimentos. O que levou os linguistas de uma universidade do país de Lagado, visitado por Gulliver, a propor que, no processo de comunicação, as palavras fossem substituídas pelos objetos que elas representam. Em vez de falar “laranja”, mostrar uma laranja... A proposta só não foi implementada por razões práticas: havia objetos muito grandes, o que tornou as conversas limitadas a objetos que pudessem ser levados nas mãos, bolsos e bolsas.
E há também os sentidos sutis que o dicionário não ajuda na tradução, pois que vêm nos interstícios das palavras a que Fernando Pessoa se referiu.
Esse caso que vou relatar se encontra no delicioso livro No país das sombras longas. Esse título, em si mesmo, é um teste para seus conhecimentos. Que país é esse em que as sombras são sempre longas? Qual é a condição astronômica para que isso aconteça? Quem tiver conhecimentos rudimentares de astronomia deve saber onde fica esse país e que clima é o seu. Eis aí uma pergunta que deveria cair no Enem... É um livro delicioso de aventuras, em meio a gelos sem fim, ursos, focas, cães, trenós e costumes diferentes, entre eles o anzol para pegar as pulgas que vivem dentro das roupas de couro costuradas sobre o corpo...
Pois minha leitura foi interrompida por esta frase estranha: “Siorakidsok era paralítico da cintura para baixo e tinha ouvidos duros”. Ouvidos duros... Não fez nenhum sentido. Até que me vali de um truque da imaginação: tentei fazer a tradução ao contrário, do português para o inglês. Ouvidos duros, ao contrário: “hard of hearing”. O homem era surdo...
Logo na página seguinte, esta frase me parou de novo: “A um canto via-se uma grande calha de pedra pela qual todos passavam as suas á guas servidas, valiosas para o curtimento de couro...”. Suas águas servidas? O que é isso? Usei então o mesmo método de decifração. Traduzi ao contráro: “passavam suas águas servidas”, “pass water”, que quer dizer fazer xixi...
A tal calha de pedra era um mictório…
Agora, alguns versos do poema “The Rock”, de T. S. Eliot:

The Eagle soars in the summit of Heaven,
The Hunter with his dogs pursues his circuits.
O perpetual revolution of configured stars.
O perpetual recurrence of determined seasons...

Esses versos parecem descrever um cenário de caça, a águia, ave de rapina, voa nas alturas. Sobre os campos, um caçador com seus cães trilha os seus caminhos. E foi assim que o tradutor traduziu o texto.
A Águia paira sobre os píncaros dos céus, o Caçador com seus cães rastreia-lhe o trajeto. Ó perene revolução de estrelas consteladas...”
Parece que a tradução está certinha. A não ser pelo fato de que Eliot diz que ele está descrevendo o caminho dos astros no céu: a revolução permanente das estrelas consteladas. É esse fato que dá a chave para a tradução.
Eagle” não é uma ave em voo: é uma constelação cujo nome em português é “Áquila”. O “Hunter” é o nome em inglês para a constelação que é atravessada pelas “Três Marias”, o Órion. E os cães não são cães de caça. São as constelações ao lado do Órion, o Cão Menor e o Cão Maior, na qual se encontra a Sirius, a estrela mais brilhante do céu.
A tradução certa, então, seria “A Áquila paira sobre os píncaros dos céus, o Órion com seus cães rastreia-lhe o trajeto...”. Assim, saímos da companhia do caçador, da águia e dos cães e somos devolvidos ao mistério das estrelas nos céus…
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